ARTIGO | Notícia

Flávio Brayner: mais depressa!

Violência de todos contra todos que o trânsito expressa, com mortes diárias, sofreu um aumento significativo com a nova forma de relação de trabalho

Por FLÁVIO BRAYNER Publicado em 25/03/2025 às 7:00 | Atualizado em 25/03/2025 às 7:22

Com 96 mortes por dia no trânsito do Brasil, penso que, mais do que uma questão de “saúde pública” ou de “segurança”, o trânsito (e o Recife é a capital brasileira com a pior circulação de veículos, avaliado em termos de tempo, engarrafamento e sinistros por número de habitantes!) é um reflexo de nosso hiper-individualismo patológico.

Barthes (Mitologias) já tinha mostrado que o automóvel (no caso a DS da Citroën) havia se tornado um símbolo de poder e hierarquia social, ou seja: um discurso!

Mas um estranho discurso em que você, o dono do carro, não é o “sujeito” dele, mas o que “está dentro” dele e no qual, você pode desfilar pelas ruas pronunciando-o!

A uberização e a transformação do trabalhador

A violência de todos contra todos que o trânsito expressa, com suas mortes diárias, parece que sofreu um aumento significativo com as novas formas de relação de trabalho – a UBERIZAÇÃO: as utopias políticas do século XIX (sobretudo o Marxismo) imaginavam uma sociedade reconciliada consigo mesma, em que aquela condição “antropológica” da criação do Homem – o Trabalho- superaria o Capital.

Assim, teríamos, ao fim, uma “sociedade de trabalhadores”, de iguais proprietários de sua força de trabalho e dos meios de produção, enfim socializados: era o fim do Reino da Necessidade!

Mas parece - eis uma hipótese a ser avaliada- que quem venceu mesmo, depois de tantas “superações dialéticas”, foi o “empreendedor”, versão proletarizada do capitalista.

Sem emprego, sem salário (ele tem “renda” e “meta” auto-estabelecida!), sem sindicato, sem previdência, sem proteção trabalhista, sem horário de trabalho, o neo-empreendedor proletarizado também não tem patrão: ele é livre!

Se na Escravidão o trabalhador pertencia ao Senhor, no Feudalismo ele pertencia à terra, no Capitalismo ele é obrigado a vender sua força de trabalho em troca de um salário.

Mas, com a UBERIZAÇÃO do trabalho, não há mais venda de força de trabalho, há serviço prestado em que o “trabalhador” é dono de seu meio de... sustento: um carro, uma motocicleta ou uma simples bicicleta, bastando uma imensa bolsa nas costas e, claro, um telefone celular.

Há alguns anos era o tênis de marca o objeto de desejo dos pequenos furtos e assaltos, hoje, claro, é o celular, o instrumento da libertação.

E assim o patrão, o burguês-capitalista, com seu fraque e cartola e um charuto na boca, desapareceu no interior de uma realidade virtual (essa expressão é, na verdade, uma “contraditio in termini”). Que revolução!

O trânsito e a derrocada da vida republicana

Podemos ir um pouco mais longe nessa fabulação sociológica sobre o trânsito, e imaginar que ele – o trânsito- coloca em cheque nossa ideia de vida republicana, dissolvida no interior daquele hiper-individualismo doentio, que vê no Outro uma ameaça, um concorrente, um competidor, movido compulsivamente pela ideia de consumir.

Marx, pensava uma sociedade de produtores, Sade sabia que o Liberalismo individualista levaria ao Reino dos Prazeres em que o Outro se tornaria apenas objeto, no interior de uma ética do gozo, numa sociedade em que o sexo e o prazer (para além do erotismo) são soberanos, nessa “Cidade Pornográfica” (D. Dufour).

A RUA marcava o lugar topográfico e republicano de todos, comum, regido por regras e normas impessoais e onde aparecemos uns aos outros.

A CASA é o lugar da intimidade, das relações afetivas e privadas. O interessante é que, quando estou dentro de meu carro (um espaço privado) circulando nas ruas (espaço público), eu deveria estar sujeito àquelas regras e normas da vida em comum, mas parece que, agora, detentor de diretos individuais (o “MEU direito eu não cedo a ninguém!”), o condutor prolonga nas ruas e no Mundo Comum, o seu “direito” de desconsiderar a vida do Outro.

E assim como o olhar invasivo e vigilante do mundo das redes sociais está destruindo a vida privada e íntima, o trânsito é o lugar onde a propriedade privada (meu carro) se projeta como soberano no mundo comum.

Uber, violência do trânsito, derrocada do mundo do trabalho, fim do republicanismo, descrença na democracia, insurgência de totalitarismos políticos, ética do gozo via consumo, pornografia generalizada (na música, na publicidade, nas redes sociais...) marcam a chegada de uma época diferente, aquela em que as ideias de Liberdade, Eticidade, Consciência social e subjetiva, e Mundo Comum pertencerão a um passado não muito distante.

NEO-EMPREENDEDORES DE TODOS OS PAÍSES: MAIS DEPRESSA!

Flávio Brayner é Professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE

Saiba como acessar nossos canais do WhatsApp


#im #ll #ss #jornaldocommercio" />

Compartilhe