Animais morrem voluntariamente? Apesar de alguns comportamentos parecerem suicidas, a explicação mais aceita é que eles apenas reagem ao sofrimento ou ao ambiente, mas não elaboram uma decisão consciente de acabar com a própria vida. Assim, cativeiro, estresse extremo ou ainda luto profundo podem levar alguns animais à abdicarem da vida.
O falcão é um predador extremamente habilidoso e estratégico, conhecido por sua velocidade e precisão na caça, embora algumas de suas táticas de ataque possam parecer arriscadas e até autodestrutivas para quem observa. Principalmente quando se trata de conflitos territoriais.
Esta imagem de intrepidez foi o que o levou a ser escolhido, nos Estados Unidos, como o símbolo dos que apregoam uma política externa agressiva, focada em segurança nacional e ancorada em fortes nexos com o complexo militar-industrial.
Com a volta de Donald Trump à Casa Branca em janeiro deste ano, o Realismo Ofensivo de Mearsheimer parece ressurgir com toda força. Ou pelo alguns de seus principais vetores: unilateralismo, coerção econômica e competição entre grandes potências. O falcão parece ter alçado voo em busca de suas presas. E aparenta, desta feita, estar faminto. Muito faminto.
Primeiro, o viés cooperativo com vocação grociana que marca o Liberalismo pós-queda do Muro de Berlim e se encontra encarnado nas instituições multilaterais leva duro golpe. Washington rompe com várias organizações da ONU e cessa o financiamento de programas internacionais relevantes.
Os EUA não somente se retiram da OMS e do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, acusando-o de adotar políticas tendenciosas contra Israel, como também suspendem todo o financiamento à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina, invocando as suas supostas ligações com o Hamas.
Trump ainda provocou um intenso abalo nos esforços de desenvolvimento global, ao remover a maior parte do pessoal da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional das suas missões em nível mundial.
Segundo, além desse boicote mais amplo ao multilateralismo, a Casa Branca opta por uma política comercial protecionista generalizada e muito perigosa. Mesmo parceiros históricos como os vizinhos Canadá e México ou, ainda, a União Europeia não são poupados.
O espectro de um conflito mercantil se ergue e desperta velhos fantasmas que fizeram-no, outrora, resvalar na esfera militar com suas terríveis consequências: as guerras. Uma OMC amputada dos Estados Unidos converte-se em organização capenga, sem efetividade, sujeita à defecção de novos membros, erguendo-se, assim, como um catalisador de novas contendas.
A ameaça que paira sobre a lex mercatoria, longamente tecida desde o fim da Segunda Guerra Mundial, é algo grave e que deve ser devidamente apreciada pelos chefes de Estado e de governo do mundo inteiro. Apesar de ser um regime internacional que encerra, essencialmente, os interesses do Norte-Global, seu desmonte repentino pode gerar um caos adverso e generalizado nocivo a todos.
Terceiro, o confronto dos EUA com a China vem se desenhando já há algumas décadas e, agora, deve atingir seu paroxismo. A paulatina inserção de Pequim nos diversos regimes internacionais tem gerado desconforto em Washington. O sino-capitalismo vem, na verdade, demonstrando eficácia inconteste e seduzindo uma pletora de parceiros.
A China negocia na arena internacional como um autêntico colosso: econômico, tecnológico, militar e humano. E isso incomoda Trump. A competição com a Rússia, apesar de histórica, é, hoje, de outra natureza. Ela é essencialmente regida pela capacidade nuclear de Moscou. E, também, moldada, nas últimas décadas, pelo apetite autoritário e territorial de Vladimir Putin que, seja dito de passagem, inspira, agora, o discurso de anschluss do Canadá e da Groenlândia apregoado por Trump.
A resultante destes três vetores tem direção e sentido que apontam para um futuro sombrio. Sobretudo em razão da proeminente instabilidade geopolítica gerada nos últimos anos: (i) pela já longeva guerra entre Rússia e Ucrânia, e (ii) pelo recente e feroz embate entre Israel e Hamas. A cooperação transatlântica - entre os Estados Unidos e a Europa Ocidental - que marca o cenário internacional desde a II Guerra Mundial expõe fraturas preocupantes.
A leitura destes dois conflitos obedece a uma gramática distinta quando feita em Washington ou em Bruxelas. No primeiro caso tem-se a perspectiva do falcão hobbesiano, traduzindo-se no próprio Leviatã e na Realpolitik do poder do sabre; no segundo, expressa-se o prisma do corvo inteligente, astucioso, que joga segundo as regras de um poder civil e normativo.
Com efeito, desde sua posse, Trump age à revelia de seus aliados europeus, compelindo-os a adotar uma postura de desconfiança, até então inédita. Assim, a União Europeia têm manifestado bastante inquietação no que concerne ao arcabouço de defesa encerrado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), onde os EUA exercem uma liderança inconteste.
A indústria de guerra parece, por incrível que pareça, nortear, hoje, as estratégias produtivas dos Estados europeus. Ao mesmo tempo, a construção de uma Europa da defesa parece ganhar, como jamais no passado, impulso importante, denotando claramente uma busca pela alforria do guarda-chuva estadunidense. E sob a batuta do Presidente Emmanuel Macron, a França cogita até mesmo ampliar seu guarda-chuva de dissuasão nuclear aos seus parceiros da UE. O hard power do falcão terá prevalecido sobre o soft power do corvo?
As resistências internacionais - e também nacionais - às ações de Donald Trump podem sugerir que sua conduta exageradamente belicosa beira o precipício e, consequentemente, ameaça não somente o equilíbrio de poder mundial, mas, a médio prazo, a sua própria existência política.
Subestimar o potencial e a capacidade de reação das presas pode se configurar em erro fatal para o predador. Ambos podem perecer ou se ferirem tanto que, rotos e maltrapilhos após a refrega, se tornam incapazes de sobreviver.
Claro que o Presidente norte-americano não é ingênuo e tem uma assessoria de monta. Provavelmente a com os maiores recursos e informações. Os riscos devem estar sendo muito bem calculados. Porém a certeza não é deste mundo. O fio que separa o remédio do veneno é por demais exíguo. E o veneno mata. Trump: Falcão kamikaze?
Marcelo de Almeida Medeiros, Professor Titular de Política Internacional Comparada
Departamento de Ciência Política da UFPE, Pesquisador PQ-1C do CNPq.
E-mail: marcelo.medeiros@ufpe.br