O Projeto de Lei Ordinária nº 188/2023, de autoria da vereadora Liana Cirne (PT), aprovado por unanimidade pela Câmara Municipal do Recife e encaminhado ao prefeito João Campos para sanção, é louvável, mas confuso, e até inconstitucional em alguns aspectos.
Elogiável é o seu propósito de ampliar os mecanismos para o combate à violência contra a mulher, que tem na Lei Maria da Penha, no âmbito federal, sua expressão máxima.
Ao instituir punição no âmbito municipal para os criminosos, o mérito do PLO, entretanto, é turvado justamente por emaranhar duas áreas do Direito: o penal e o administrativo.
Aplicação
O artigo 3º da proposta normativa diz que “Sem prejuízo da responsabilidade penal e civil”, o cometimento de violência doméstica contra a mulher sujeitará os agressores a sanções administrativas.
Em sua justificativa, a autora lembra com pertinência a abrangência do que pode ser considerado “violência contra a mulher”: “É todo ato lesivo que resulte em dano físico, sexual, patrimonial, psicológico, que tenha por motivo principal o gênero, ou seja, que seja praticado contra mulheres pelo fato de serem mulheres.
Pode ser praticada no âmbito da vida pública ou privada, por violência institucional ou por meio de ações individuais, a exemplo do assédio, da violência doméstica, do feminicídio, do estupro”.
Entre as sanções sugeridas pela vereadora, a do inciso I indica: “multa no valor de R$ 1.000,00 (mil reais) a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), a ser aplicada segundo a gravidade da infração e a capacidade econômica do agressor”.
E aqui surgem as primeiras dúvidas:
- A quem, no executivo municipal, caberia a competência de fazer tal julgamento, uma vez que o delito terá sido de cunho penal e não administrativo?
- Seria de se esperar que os canais de denúncia de violência contra a mulher reportassem ao poder público municipal a existência de queixas para que o agressor possa ser identificado como tal?
- A multa seria aplicada apenas depois de a denúncia ter sido acolhida e julgada na vara criminal? Ou passaria a valer a partir da acusação, ferindo a presunção de inocência, um princípio constitucional que garante que ninguém pode ser considerado culpado até que uma sentença penal condenatória seja transitada em julgado.
Esse questionamento torna-se ainda mais relevante ao observarmos o parágrafo único desse mesmo artigo: “Em caso de condenação penal, o prazo previsto no inciso II contará a partir do trânsito em julgado no âmbito criminal, se posterior ao administrativo”.
Como poderia o administrativo deliberar antecipadamente sobre uma matéria cuja culpabilidade ou inocência do acusado é de decisão exclusiva da vara que julga tais casos? Ou seja, a criminal.
Inconstitucionalidade
O inciso II tem sua inconstitucionalidade evidenciada quando sugere “a proibição de contratar com o Poder Público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos, contados do trânsito em julgado da decisão administrativa”.
Nesse caso específico, porque se contrapõe ao princípio da intranscendência da pena, expresso na frase obrigatória nas aulas de Direito Penal: “A pena não pode passar da pessoa do condenado”.
Ao penalizar uma empresa cujo sócio majoritário responda pelo crime de violência contra a mulher, hipoteticamente, serão automaticamente punidos os demais sócios, sem terem cometido qualquer delito.
Ademais, se o prazo de cinco anos passa a ser contado a partir do trânsito em julgado, a decisão administrativa seguiria o mesmo período, ou seria iniciada antes do julgamento? São indagações que, antes de passarem pela caneta do prefeito, precisam ser elucidadas.
Caminhos
Não é confortável para uma advogada, mulher e feminista, levantar questões como essas, aparentemente se opondo ao projeto de uma vereadora alinhada com as mesmas causas.
No entanto, o ponto aqui é outro: trata-se de não resvalar em soluções açodadas que, mesmo repletas de boas intenções, terminem por atrasar, ou mesmo ofuscar, outras pautas que mirem o mesmo objetivo, mas não carreguem contra si o fato de se afastarem do aspecto constitucional-jurídico, vindo a ser, consequentemente, inexequíveis.
Mulheres que trabalham nos ambientes jurídico, judiciário e legislativo precisam, sim, se empenharem em, assim como fez a vereadora Liana Cirne, reforçar o máximo possível o escopo já robusto da Lei Maria da Penha.
Políticas públicas que envolvam a educação como forma de alterar os padrões culturais que fazem do homem um agressor é um caminho ainda ermo, implorando para ser acessado e povoado.
A cada ano, os dados das pesquisas indicam acréscimo no número de mulheres assediadas, abusadas, estupradas e assassinadas.
Um forte indicativo de que as mudanças precisam começar na base. A insegurança econômica para a qual algumas mulheres são ejetadas ao se separarem de um agressor poderia ser remediada, por exemplo, com incentivos fiscais para empresas que as contratem.
Os danos causados pela violência contra a mulher, extensivos à família, são vastos. É preciso, sim, encontrar formas viáveis de mitigá-los.
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Gisele Martorelli, advogada