Flávio Brayner: 'Olinda, revolução e carnaval!'
Cada rua, conduzindo-me a uma lembrança, fazia-me repetir a frase, mistura de melancolia e piscada d´olhos ao jovem que fui: "Já fui olindense!"

Fui dar uma volta em Olinda, semana passada, e não resisti em errar pela cidade e encantar-me com as cores renovadas das casas. Cada rua, conduzindo-me a uma lembrança de meu passado olindense, fazia-me repetir a frase, mistura de melancolia e piscada d´olhos ao jovem que fui: “Já fui olindense!”.
De tanto repetir a frase a cada esquina, ela terminou por parecer-me estranha. “Como, ‘já FUI olindense’”? Ou se é, ou não se é; ou se nasce ali ou em outro lugar, mas não se pode deixar de ser ‘natural’ do lugar onde se nasceu, mesmo que se adquira outra nacionalidade. Pois é: fui e não sou mais...
A questão não diz respeito às origens ou certidões de nascimento e, sim, a um determinado espírito. Mais precisamente, ao espírito de uma época que resolveu, por obra de uma astúcia hegeliana, baixar nas ladeiras daquela cidade.
Em meados dos anos 70, em plena ditadura militar, Olinda começava a se tornar para o Recife, aquilo que Montmartre o fora para a Paris do fim do século XIX: lugar de artistas, intelectuais, marginais, revolucionários, boêmios..., uma cidadela onde a polícia não entrava, nem sequer para conter os “paraísos artificiais”(Vide Baudelaire) dos “Concertos Chaminés” de então.
Bar Atlântico (o famoso “Maconhão”), Bar do Ninho, Ecológico, Bar da Rosa, Cantinho da Sé são os nomes dos lugares aonde íamos refazer a ordem do mundo e da história segundo nossa míope onisciência revolucionária.
Ali eu comecei a conhecer a transição ética de nosso tempo: aquela que abandonou a moral do dever e a substituiu por outra, altamente hedonista. Vi quase todos os blocos de carnaval da ‘resistência democrática’ nascer e assisti, atônito, à instalação da barraca do Partidão (O bêbado e a equilibrista): o gelo da Sibéria de Stalin derretendo, sob a sensualidade dos trópicos, em nossos uísques e vodkas. Olinda era o túmulo do comunismo!
Havia personagens que pareciam saídos de novelas picarescas: Xirumba, Geraldo Sobreira (“Quem não tem Gabeira, transa com Sobreira!”), Cláudio Ferrário, Negão Aldinfas, Mestre Valdomiro (do Maconhão); e os nossos “maîtres-à-penser”: Deprimilson, Fernando Mota, Antônio Montenegro, Jomard Muniz, Roberto Martins, Valteir Silva, Denis Bernardes...
Nas mesas dos bares recebíamos orientações intelectuais, desenvolvíamos uma sensibilidade para a existência que uma universidade cercada e impedida não podia fazê-lo.
Pode ser que tudo aquilo não tenha passado de um artifício marcuseano de “dessublimação repressiva” (Marcuse), projetado pela esperteza da ditadura para aliviar a tensão política e sensual de uma geração inquieta –ainda mais com a nova moralidade que se instalava no país com a sunga de Gabeira.
Olinda era, para o desgosto das famílias “burguesas”, uma cidade reicheana, onde liberação sexual antecedia a revolução política (todo mundo tinha lido ou ouvido falar do “Escuta, Zé Ninguém!”de Reich); a revolução não veio, mas era ela que nos fornecia os argumentos dialéticos para safadear as meninas.
Eis porque, quando ouço a palavra Revolução, eu sinto uma saudade da Praça da Preguiça! E bastava atravessar aquele pontezinha logo após a Escola de Aprendizes para imaginarmos já estar no Reino da Liberdade, que o marxismo preconizava. Que época!
Paulo Francis dizia que só os membros de uma mesma geração dispõem das condições para compreender uma época. Aquela época passou e com ela os desejos e as expectativas, mas também as ansiedades. O certo é que, como a Paris de Hemingway, quem conheceu Olinda naquele tempo levará aquela “Festa Móvel” para sempre no coração!
Para o Maestro Spock.
Flávio Brayner é Professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE