Não tive acesso aos argumentos que a condenam, mas posso imaginá-los! Em 1884, o reverendo J.W. Burgon, do New College de Oxford, pregou contra a entrada das mulheres na universidade, onde teriam de estudar os textos clássicos no original: "Será parte de nosso programa violar seu gracioso espírito com a imundície dos textos clássicos e dar a conhecer a donzelas em flor uma centena de coisas abomináveis?". Fora das universidades, fora da política e dos espaços onde poderiam influenciar de forma inadequada os destinos da cidade, coube às mulheres, desde o mundo antigo, aquela fortuna reservada à reprodução biológica e à vida doméstica, aprisionada no reino da necessidade.
O Brasil tem o maior índice de presença feminina na pesquisa científica e algumas dessas pesquisadoras obtiveram reconhecimento internacional pela qualidade e relevância de suas pesquisas. Quer dizer, o vaticínio do reverendo Burgon não se realizou e o conhecimento dos clássicos pelas mulheres não envenenou a ordem social. Na França, país dos Direitos Humanos, até 1936 as mulheres não votavam (o Brasil resolveu isso antes, em 1934) e sua presença na ordem democrática não trouxe nenhum prejuízo, muito pelo contrário: ampliou a legitimidade das decisões e aprofundou a Democracia.
A mesma coisa pode ser dita em relação aos analfabetos e sua histórica segregação da vida política. Quando a Constituição de 1988 finalmente os recebeu na ordem cidadã, na verdade desfazíamos um intento deliberado sobre a confusão entre analfabetismo e "inconsciência": o analfabeto como um inconsciente social. Já se disse que "o grande medo da Democracia é o medo dos ignorantes" (F. Savater). O que nunca se responde é o que, exatamente, os "ignorantes" ignoram que faz deles um perigo para a ordem democrática?
Igual argumentação, voltada para a manutenção de ordens discricionárias, ocorreu com a questão das cotas nas universidades: para as linhagens conservadoras aquilo era uma verdadeira ameaça à instituição e ao próprio saber, supostamente ameaçado de degradação. Não houve nada disso, mas o argumento persiste! O nó da questão é o seguinte: a distribuição do saber em sociedades oligárquicas e patriarcais necessita de filtros rigorosos e, caso o acesso dos pobres e negros à Universidade se dê por uma exigência do mercado ou da expansão dos direitos, é possível atendê-los: com as inúmeras faculdades "caça-níquel" que pululam neste país com sua baixíssima qualidade. O que era um perigo transformou-se em filão lucrativo!
Parabéns para nossas pesquisadoras, mas, de resto, nada como uma boa política de inclusão em que desaparece a "sensação de segregação". Não a sua realidade (e os afetos que inspira)!
Flávio Brayner , professor emérito da UFPE e visitante da UFRPE