OPINIÃO

A verdade é a primeira vítima de uma guerra

Se nosso país for militarmente fraco, diplomaticamente ingênuo e ideologicamente polarizado, seremos fortes candidatos a nos tornar a próxima vítima.

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OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS

Publicado em 26/10/2024 às 0:00 | Atualizado em 29/10/2024 às 16:09
Cartaz do documentário 20 dias em Mariupol - Reprodução

Há uma doença cognitiva que afeta muitos formadores de opinião no mundo "civilizado": o esquecimento seletivo das partes da história que os incomodam, seguido pela reinterpretação conveniente dos fatos.

Nesse processo, vilões se tornam heróis, e heróis, vilões, por meio das máquinas de manipulação da opinião pública - ferramentas que promovem o caos e distorcem a verdade.

Vivemos, assim, uma espécie de "remake" do Ministério da Verdade, a estrutura ditatorial imaginada por George Orwell na obra 1984, dedicada a reescrever a história conforme a vontade do Grande Irmão.

E quando essa manipulação envolve conflitos armados entre nações, o fenômeno se intensifica, exigindo do público uma atenção redobrada para não aceitar cegamente o que lê, ouve ou vê. Isso inclui, até mesmo, declarações oficiais, muitas vezes maliciosamente distantes da realidade.

Esse fenômeno não é novo. O dramaturgo grego Ésquilo, nascido em 525 a.C., cunhou a célebre frase: "Na guerra, a verdade é a primeira vítima".

Ainda assim, há jornalistas idealistas que, movidos por uma ética profissional sólida, arriscam suas vidas para estar na linha de frente e trazer relatos honestos sobre os conflitos.

Um exemplo notável é o trabalho dos jornalistas liderados por Mstyslav Chernov, da Associated Press (AP), que cobriram os primeiros dias da invasão russa à Ucrânia, em fevereiro de 2022.

As cenas impactantes capturadas pela equipe da AP foram exibidas no documentário 20 Dias em Mariupol. Mesmo sob grande risco, esses jornalistas permaneceram na cidade sitiada, enfrentando o fogo cruzado para revelar ao mundo a dura realidade daquele momento.

Transmitir essas imagens foi um desafio em si. As comunicações estavam comprometidas: o telefone via satélite era ineficaz e o acesso à internet só era possível em locais isolados e perigosos.

À medida que a situação em Mariupol se deteriorava, tornou-se imperativo contar a história de forma fiel, crua e urgente.

Para assegurar o controle territorial, o comando russo empregou artilharia pesada, mísseis de longo alcance, drones armados e ataques aéreos, atingindo tanto alvos militares quanto civis.

O documentário revela, dia após dia, o sofrimento da população cercada, que enfrentava a falta de segurança, água, energia, comida e combustível, enquanto o impacto da guerra sobre ela aumentava.

Entre as cenas mais comoventes estão as do bombardeio a uma maternidade e a um hospital pediátrico. Nessas imagens, feridos e mortos se misturam aos equipamentos médicos destruídos e edifícios em ruínas.

No vigésimo dia do cerco, a equipe da AP conseguiu escapar para as linhas ucranianas e compartilhar com o mundo o resultado de seu árduo trabalho.

Ainda que muito impactado pelas cenas do documentário, para ser justo, retomo as palavras de Ésquilo e informo ao leitor que os responsáveis pelo premiado documentário eram ucranianos.

Mais de 700 dias se passaram desde o início desse conflito, e ainda não há sinais de resolução a curto prazo. A guerra se normalizou nas notícias, com seus impactos obscurecidos por outros conflitos. Pouco se discute, com profundidade, as causas, desdobramentos e implicações para o futuro.

Como parte de uma nação cujas riquezas despertam a cobiça de antagonistas, nós, brasileiros, não devemos esquecer nem distorcer a história da guerra entre Rússia e Ucrânia. Não estamos imunes a um conflito semelhante.

Em um mundo onde potências tentam moldar a realidade conforme seus interesses, é essencial que não sejamos cúmplices da manipulação e do esquecimento.

Se perdermos de vista a verdade, estaremos fadados a cometer os mesmos erros do passado e a repetir, em nosso próprio território, tragédias que ainda podem ser evitadas.

O subcontinente sul-americano já é alvo de interesses cada vez mais asfixiantes de potências globais, que tricotam as suas verdades.

A verdade é a primeira vítima de uma guerra, mas certamente não a única. Se nosso país for militarmente fraco, diplomaticamente ingênuo e ideologicamente polarizado, seremos fortes candidatos a nos tornar a próxima vítima - não só da perda da verdade, mas, de maneira especial, da tragédia da guerra.

Otávio Santana do Rêgo Barros, general de Divisão da Reserva

 

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