OPINIÃO

A Beleza Salvou Paris. Duas Vezes

"Paris ainda não está em chamas?", rugiu Adolf Hitler, sua voz carregada de fúria e frustração do outro lado da linha. Paris guardiã eterna...

Cadastrado por

ERMANO MELO

Publicado em 28/09/2024 às 0:00 | Atualizado em 28/09/2024 às 6:30
Paris, capital francesa, "a dama das artes e da história" - STEPHANE DE SAKUTIN/AFP

Era agosto de 1944, e o avanço das forças aliadas estava ameaçando libertar Paris da ocupação nazista. Hitler, desesperado para reter qualquer vantagem tática e psicológica, exigira que seu fiel General Dietrich von Choltitz, então chefe militar da cidade, levasse adiante sua ordem: destruir Paris, reduzindo-a a ruínas e fogo. Os belos monumentos históricos da capital francesa estavam destinados a se tornarem cinzas.

O general encarava um dilema moral. Ele ouvira Hitler detalhar destruir a Torre Eiffel, o Museu do Louvre, a Catedral de Notre Dame, cada ponte sobre o Sena e tudo mais que simbolizava a cultura, a história e a beleza de Paris. No entanto, motivado talvez pela humanidade remanescente e pelo impacto devastador de tal ato, von Choltitz não acatou. Paris sobreviveu - a ordem monstruosa foi ignorada.

Von Choltitz tornou-se notório por sua desobediência - como um anjo sombrio - que, em um surto de racionalidade, preservou o que poderia ter sido perdido para sempre. Paris, a dama das artes e da história, foi salva na última hora.

No período pós-guerra, novas ameaças surgiram de uma fonte diferente, mas não menos destrutiva: a modernização urbana desenfreada. Na linha de frente estava Pierre Dreyfus, então Ministro de Habitação e Urbanismo da França. Inspirados por visões modernistas, Dreyfus e outros planejadores urbanos tinham aspirado à transformação de Paris em uma cidade ultramoderna, que incluiria arranha-céus e avenidas largas e pavimentadas no lugar dos históricos, mas densamente povoados, bairros históricos.

Entre os projetos mais controversos estava a demolição dos antigos mercados de Les Halles. Este centro, apelidado de "o ventre de Paris" por Émile Zola, estava destinado à demolição completa e substituição por um centro comercial moderno, o Forum des Halles - hoje um grande centro comercial subterrâneo.

É aí que entra o herói inesperado: André Malraux. Escritor e Ministro dos Assuntos Culturais em 1959, Malraux foi um defensor fervoroso da preservação do patrimônio e que resistiu através da Lei Malraux de 1962. Esta estabeleceu zonas protegidas, restringindo a capacidade dos desenvolvedores de destruir o tecido urbano histórico.

Paris sobreviveu a duas ondas destrutivas - demonstrando que a beleza encontrada em sua rica tapeçaria histórica é frequentemente a melhor defesa contra os impulsos destrutivos irracionais. Essa história desperta a imaginação - que cidade brasileira sobreviveria pela beleza?

Imagine que o Paraguai - em uma revanche enlouquecida - tivesse a chance de destruir Brasília? Ou qualquer outra capital brasileira? Quantas escapariam pela beleza arquitetônica? Excetuando-se alguns resquícios de centros históricos, acho que nenhuma. As chamas iriam se deliciar com a esplanada dos ministérios e com aquelas conchas disformes do congresso; devorariam os atuais palácios sem o menor peso na consciência, pois não simbolizam nada para o Brasil e nem para a humanidade. Acho que até a Catedral de Brasília não causaria comoção, pois não inspira transcendência.

Aqui em Recife, com exceção da Rua do Bom Jesus e adjacências, apenas construções pontuais fariam falta, mas a maioria seriam merecedoras do calor destrutivo. Construções bonitas e simbólicas mudam de função, mas não de forma. A nossa Casa da Cultura já foi um presídio; no Poço da Panela e em Olinda, casas antigas viraram restaurantes e pousadas; antigos casarões de engenho hoje são anteparos da feiura total dos edifícios modernos e um deles virou o Museu do Estado. Já construções feias, ao perderem suas funções, tem que ser demolidas, pois não servem para mais nada. Essa é a herança maldita da escola de Bahaus e de Le Corbusier, do início do Século XX.

Arquitetos e autoridades, olhem para Paris - ou qualquer cidade histórica europeia. Parem de nos agredir com suas deformidades urbanas, percebam que suas obras não sensibilizariam o mais sensível dos incendiários. Ouçam os ecos da voz de Malraux, pois Paris continua seduzindo com seu charme e graça inigualáveis. E persiste, não como uma mera coleção de estruturas belas, mas como um testemunho vivo da resistência e da reverência pelo que é verdadeiramente humano. A beleza que salvou Paris, duas vezes, permanece sua guardiã eterna e silenciosa.

Ermano Melo, oftalmologista

 

Tags

Autor

Veja também

Webstories

últimas

VER MAIS