OPINIÃO

Amaro, o pianista

Como é sabido, o Recife tem dificuldade de reconhecer seus talentos. Prefere-se a divulgação da mediocridade, desde que venha de fora....

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SÉRGIO GONDIM

Publicado em 27/09/2024 às 0:00 | Atualizado em 28/09/2024 às 6:49
Amaro Freitas - JOÃO VICENTE/DIVULGAÇÃO

Todo mundo sabe que a preferência musical do brasileiro não é por música clássica. Também não é pela sofisticação dos arranjos e letras da chamada música popular brasileira ou pelo jazz. Quem faz sucesso no país é a música de uma só batida, de linguagem direta descendo a bundinha até o chão, que vai tomar cachaça, trair e ser traído. Não julgo o gosto da maioria e entendo que "É pau, é pedra, é o fim do caminho, são as águas de março fechando o verão" é letra para universitário de Ipanema e o Brasil real não está na universidade de Ipanema.

Artistas que estão fora do padrão chamado de sertanejo demoram a ter seu valor reconhecido. Gosto não se discute. Me vejo cantarolando um ou outro sertanejo, embalado pela história de determinação, luta e superação que levam alguns ao sucesso, assim como não tenho simpatia por competições de luta, mas reconheço a nossa Bia e vibrei com a sua medalha de ouro.

Amaro Freitas é daqui de Nova Descoberta e confesso que fui conhecê-lo através dos elogios no The New York Times e The Guardian. Como é que pode! Sem tanto destaque em sua terra, atravessou os mares para encantar americanos, europeus e japoneses.

É músico, toca um instrumento improvável aqui, o piano, tendo começado na igreja, seguindo pelo conservatório, em paralelo ao telemarketing necessário para custear os estudos, até ganhar o mundo.

Entre um concerto e outro, Amaro foi à Catuama onde o conheci. Fiquei torcendo para que, mesmo sem saber nadar, mergulhasse naquele mar e tirasse o som das águas calmas. Tarefa difícil naquele silêncio, até para quem fez o que Amaro foi capaz de fazer na floresta. Com o piano "preparado", inserindo recursos de percussão, compôs os sons da Amazônia que encantaram os franceses. No concerto convida os ouvintes a fechar os olhos e mergulhar. Até chorar.

Amaro é uma pessoa simples, tranquila. Se fosse eu, só o fato de ter tocado com a "divindade" Milton Nascimento já teria ficado metido a besta. Só o fato de ter sido aplaudido de pé na Bélgica, França, Estados Unidos, Suíça, Alemanha, Holanda, Japão, de tantos pedidos de bis e tris, já empinaria o nariz, feito a seleção brasileira quando ganha um jogo. Ele não, como se não fosse nada ser citado entre os melhores do jazz em vários países e ter dezenas de milhares de audiências por mês, só no Spotify.

Amaro Freitas, Nova Descoberta, Recife, Pernambuco, Brasil, faz sucesso aonde chega. Com sensibilidade, toca uma música universal, ancestral, mergulha nas profundezas do Brasil, música para ouvir, sentir, pensar e navegar.

Como é sabido, o Recife tem dificuldade de reconhecer seus talentos. Prefere-se a divulgação da mediocridade, desde que venha de fora, uma espécie de ufanismo ao contrário. Dizem que, se possível, os recifenses puxam para baixo, como na história do balaio com caranguejos. Certamente também irão procurar defeitos em Amaro e nisso posso ajudar: ele não sabe nadar.

Sérgio Gondim, médico

 

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