OPINIÃO

A modernidade e o acesso à Justiça

O mestre Rui Barbosa afirmou, com a sapiência costumeira, que justiça atrasada não é justiça, mas injustiça qualificada e manifesta......

Cadastrado por

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire

Publicado em 06/07/2024 às 0:00 | Atualizado em 06/07/2024 às 11:06
Rui Barbosa: "Oração dos Moços" - Divulgação

Em sua "Oração dos Moços", de 1921, perante concluintes da Faculdade de Direito de São Paulo, Rui Barbosa afirmou, com a sapiência costumeira, que justiça atrasada não é justiça, mas injustiça qualificada e manifesta. A virtualização do processo judicial e a consolidação das ferramentas tecnológicas que, em princípio, deveriam se destinar a assegurar o gênero de primeira necessidade equivalente ao acesso à justiça, afastando-se a vergonha da injustiça fruto da prestação jurisdicional extemporânea, no instante em que não funciona, a todos confronta à face contemporânea perversa da advertência de Rui.

Desde a criação do processo judicial eletrônico com a Lei 11.419, em 2006, ao novo Código de Processo Civil, no ano de 2015, ao Marco Civil da Internet, com a Lei 12.965, em 2014, até hoje, muito chão foi percorrido. Sem dúvida, no trajeto nem sempre linear, avulta a conscientização de que este é um caminho sem retorno, a exigir dos profissionais do Direito, inclusos os da advocacia, adaptação, paciência e reciclagem, na transição da caneta ao token.

Nesse cenário, novos desafios se revelam sem aviso prévio, do que são ilustrativas as frequentes instabilidades ou quedas de servidores e/ou sistemas de peticionamento eletrônico nos Tribunais, críticas às Ouvidorias e dificuldades outras. Não à toa, concluem Alexandre Saldanha e Pablo Medeiros, citados por Gabriella Molina (revista eletrônica Migalhas, 13/05/2022), que o processo eletrônico e a Internet até podem ter solucionado as questões atreladas ao acesso à justiça do século 20, mas não fizeram a mesma coisa quanto àquelas correspondes ao século 21.

Ainda que se diga que o processo eletrônico ampliou as condições do acesso à justiça, suplantando as barreiras físicas de outrora, jamais vai existir eficácia real pela via tecnológica enquanto a inclusão digital não for uma conquista para todos e os sistemas que deveriam suportá-la não forem estáveis, seguros, confiáveis, ou a ideia em si não passará de uma vã ilusão.

Se a "sociedade da informação" não mais é capaz de ignorar as facilidades que a tecnologia oferece, o propósito de descomplicar as vidas das pessoas que necessitam do Poder Judiciário não se materializará enquanto as ferramentas virtuais estiverem mais no papel que na prática e o trabalho do advogado for enxergado como substituível por um robô.

A pandemia da COVID-19 ensinou a humanidade a se virar para seguir suas rotinas, fazendo melhor uso da tecnologia, porém, não implicou para o sistema de justiça, ao contrário do que alguns talvez acreditem, no morticínio do olho no olho, das sustentações orais e julgamentos presenciais e dos despachos em gabinete com os magistrados e suas assessorias. Da mesma forma, não há inteligência artificial que substitua o senso crítico humano.

Ninguém se sente confortável a escolher, hoje, o processo físico ao eletrônico, se é lógico o benefício do ganho de tempo. O Direito, enquanto Ciência, é concitado a acompanhar a evolução da sociedade ou restará estático, atropelado pela dinâmica dos acontecimentos, sua matéria-prima. Mais que isso, ninguém há de ser contrário à tecnologia e ao fato de que a plataforma digital encurta distâncias ou que a democratização do acesso à Justiça ou a construção, enfim, de um Judiciário mais acessível, é um fenômeno irrefreável.

No reverso da medalha, entretanto, ninguém pode fingir que não percebeu o quanto resquícios da velha cultura da burocratização e a falta de um espírito cooperativo e de mútua confiança entre os diversos atores forenses ainda nos persegue, assim como que a modernidade pretendida pela sociedade não se limita ao critério tecnológico. Em outras palavras, o jurisdicionado espera respostas, soluções, segurança jurídica, e não bateção de cabeças ou discussões inócuas daqueles incumbidos de entregá-la.

Das duas, uma: ou as ferramentas tecnológicas vêm para descomplicação do acesso à Justiça e os sistemas dos Tribunais funcionam, além dos canais de comunicação, ou a modernidade conquistada terá o mesmo efeito da moral da história da fábula da montanha que pariu um rato, o que nos arrastará a regredir anos, quando teríamos tudo para evoluir décadas.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

 

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