O ano era 1957. Gabriel García Márquez (o Gabo) estava com 29 anos. Foi nessa quadra que o escritor concluiu a escrita da novela "ninguém escreve ao coronel". O texto foi recusado por diferentes editores e só foi aceito e publicado em 1961. Utilizando uma frase atribuída a Mário de Andrade, seria possível afirmar que nessa estação ele havia alcançado o valioso tempo dos maduros.
O título da novela foi sacado da afirmação de uma das personagens - o carteiro. O coronel levou 27 anos na expectativa de receber uma carta contendo a notícia da sua aposentadoria e o valor dos proventos que iria receber. E todas as sextas-feiras - dia em que o barco chegava à pequena cidade - o coronel escutava a mesma elocução do mensageiro: "ninguém escreve ao coronel.
O tema serve como uma luva para o Brasil atual. Até porque o presidente Lula incluiu, entre as suas promessas de campanha, zerar as filas do INSS. Todavia, o número de processos que tramitam pela autarquia federal foi aumentando sempre. Sucedeu o mesmo com as despesas anuais - R$1 trilhão. Apenas em abril deste ano existiam 1.397.408 demandas de segurados na expectativa de resposta. As panes digitais nos sistemas de processamento de dados do Instituto agravaram a situação. Entre janeiro de 2023 e meados de abril deste ano houve 164 interrupções. Tais colapsos teriam barrado a apreciação de 3,4 milhões de processos de um total de 25,4 milhões (O Globo). Infelizmente, os avanços na tecnologia não tiveram o condão de revelar o óbvio: o sistema está a serviço do homem e não o contrário.
Enfim, nesse pélago de processos abichados pelas panes, estava, entre muitos outros, a petição de um professor de "tae-kwon-do". O especialista ralou, além do tempo razoável, para abiscoitar um provento mais honrado ou digno. Afinal, viver de aposentadoria no Brasil é a primeira grande penalidade na idade provecta. Bem que o instrutor poderia ter se candidatado à função de segurança de ministro do STJ. Receberia R$39 mil por oito dias de trabalho no exterior. Infelizmente, nem sempre como se quer. Por isso o tempo esperado pelo professor implicou a ruptura de um quadril. Foi internado num hospital para cuidar da articulação sinovial. A espera pela autorização do plano de saúde e pelo INSS causou vários estragos. Já não era um quadril, eram dois que careciam de prótese. E o doente raciocinou como Guimarães Rosa: viver é a arte de rasgar-se e remendar-se ininterruptamente. Por isso aceitou o restauro de uma banda do corpo e, aguardou a autorização para a outra. Considerando que a vida é cheia de mistérios e espantos, a história do professor poderia ser diferente da biografia do velho coronel. Mas só um tiquinho.
Uma semana após a cirurgia, o professor deixou o nosocômio com uma muleta no sovaco. Além das "dores de açoite", o silêncio ou calada irascível do INSS. Provocado pelo contribuinte, o Instituto proferiu o veredicto: o nome do interessado havia desaparecido da lista de "solicitantes". Coxeando ou manquitolando, o contribuinte suplicou maiores informações, mas foi rechaçado por falta de agendamento prévio. Contudo, ser casado tem alguns benefícios. Por isso a "mamãe ursa" rugiu alto na defesa do marido: "daqui não saio e daqui ninguém me tira". Um senhor encaramujado, sustentado por um cano na parede da sala, tartamudeia: por que razão os funcionários da previdência são em geral tão desatenciosos e pouco responsáveis? Eles sabem que têm o dever constitucional de bem servir, mas tratam o contribuinte como um ser marginal que não merece respeito ou apreço. Por essa razão a notícia recebida pelo professor, quando as portas da repartição já se fechavam, foi arrepiadora: o nome do candidato à aposentadoria não constava do sistema. A documentação foi digitalizada no mês de fevereiro de 2024 e gerado um protocolo, mas houve um blecaute na cabeça do responsável e o processo ficou a hibernar. Seria necessário começar tudo de novo.
Tendo em vista que notícia ruim não caminha sozinha, outro malfeito foi identificado: os 10 anos trabalhados pelo professor não seriam computados. Ao escutar a rezinga da mulher, o servidor berrou exaltado: "A culpa é da lei, minha senhora, é da leiii! Somos cumpridores do que está escrito como se estivéssemos diante da Tábua de Moisés". E completa: fale com o presidente, os deputados, os senadores, o escambau .... Cabisbaixo, o professor ainda teve forças para balbuciar: "o que devo fazer com as sobras do meu tempo de serviço? " Baixando a voz para tornar as palavras mais palatáveis, o servidor responde com as sílabas dedilhando uma opereta: "Deixe tudo arquivado numa pasta. No Brasil as leis mudam como desfile de moda e estação do ano. Nesse exato instante o senhor deve pensar no seu futuro! " Que futuro, calculou o professor. A resposta foi encontrada na última palavra da novela de Gabriel García Márquez. "- Diz lá, o que vamos comer" (indagou a esposa asmática ao marido). "O coronel precisou de setenta e cinco anos - os setenta e cinco anos da sua vida, minuto a minuto - para chegar a este instante. Sentiu-se puro, explícito, invencível, no momento de responder: - Merda".
Dayse de Vasconcelos Mayer é advogada e doutora em ciências jurídico-políticas