OPINIÃO | Notícia

As grandes coisas são o que realmente importam

As vozes das crianças me despertaram prematuramente. Elas aumentavam e diminuíam reforçadas por corridas curtas e gritos incompreensíveis.

Por OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS Publicado em 15/06/2024 às 0:00 | Atualizado em 15/06/2024 às 6:46

O ar-condicionado gelado aliou-se a algaravia, indicando que era hora de saltar da cama.

Por telefone, na semana anterior, prometera ao neto mais velho que quando chegasse os levaria de manhã, todos os dias, para a escola - e a pé, como se fosse uma expedição exploratória do bairro.

A porta do quarto se abriu e como um raio o menorzinho entrou e se jogou em cima de mim, balbuciando coisas incompreensíveis a um recém desperto. O maior veio logo atrás e falou mansinho:

- Se troque, não quero chegar atrasado na escola.

Vamos e convenhamos, há coisa melhor na vida que desfrutar dessa energia revigorante?

Mudo rápido de roupa. Arrumo a cama. Molho o rosto. Escovo os dentes. Estou pronto para a primeira missão do dia. Sento-me na sala esperando a hora de sair.

Escuto um barulho no quarto. Corro preocupado para ver o que aconteceu. O balde cheio de bonequinhos de plástico caiu no chão, espalhando os soldadinhos com seus morteiros, fuzis, pistolas, lança-chamas, rádios etc.

Como não sabe ainda falar, o pequeno me olha, um sinal de que eu devo sentar-me para brincar com ele.

O maior, por sua vez, liga a TV na sala para ver um vídeo no YouTube que ensina a desenhar "monstros".

A babá põe ordem na casa:

- Apague a TV.

- Guarde agora os soldadinhos no balde.

- Vamos embora.

Os dois logo obedecem ainda que entre muxoxos.

Invejo a determinação da moça. Eu não conseguiria, na verdade, nem tentaria.

Ao sair do prédio, o trânsito intenso me chama atenção. Ruas estreitas e em permanente estado de obras são as possíveis causas. Cidades velhas precisam mesmo de constante manutenção.

Eu arrasto uma mochila enquanto seguro a mão do maior. A babá põe o menor no colo e a bolsa nas costas (uma pena que as calçadas não estejam com o piso nivelado que permitam o uso do carrinho sem contratempos).

- Vovô, temos que atravessar na faixa.

Andamos um pouco mais para adequarmo-nos ao aviso, e para reforçar a educação social.

Para minha surpresa, um carro parou dando-nos passagem. Fiz o sinal de joinha, caminhamos rápido e aproveitei para comentar com a turma.

- Muito legal o que aquele moço fez.

A entrada da escola parecia um mercado persa.

Mães para um lado, pais para outro, carros mal estacionados, porteiro chamando cada criança pelo nome, tias dando informações quentinhas sobre atividades aos responsáveis, e elas, as crianças, com ar de independência largam nossas mãos e se abalam decididas corredor adentro.

O maior volta correndo.

- Vô hoje tem futebol, vou até mais tarde.

Aí então percebi por que ele na saída de casa colocou a camisa do Sport na bolsa.

- Boa sorte, faça um gol bem legal.

- Pode deixar.

A babá me diz que o menor, alcunhado de "phelpszinho" pelo pai, também tem atividade extracurricular de natação.

Mais uma falha, deveria ter percebido o calção do baby shark que ele usava por cima da fralda.

Na volta compro pão quentinho na padaria ao lado da igreja para tomar no café e relatar à avó as proezas e descobertas da pequena jornada.

Sabe, caro leitor, cada dia, com o avanço da idade, incorporo com mais certeza a frase da pesquisadora estadunidense Jennifer Doudna, prêmio Nobel de química, pela descoberta do processo conhecido como RNA mensageiro: "As grandes coisas são o que realmente importam."

Enquanto se aperfeiçoava e liderava sua equipe, ela aprendeu a fugir das estradas esburacadas e com pedras que a pesquisa por vezes obriga os cientistas a percorrerem, apegando-se às largas avenidas da razão e até emoção na construção de sua teoria e posterior aplicação.

Ela, em seus grandes momentos, nos salvou, ao mundo, na pandemia.

Esses momentos vividos por mim e minha esposa, iguais aos vividos por tantos outros avós na relação com netos, são coisas que realmente importam!

Se você é avô ou avó e puder, desfrutem-nas.

Otávio Santana do Rêgo Barros, general de Divisão da Reserva

 

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