OPINIÃO

Equiparar aborto a homicídio é violência institucional

A luta é dura, mas necessária para assegurar que os valores da justiça e da democracia prevaleçam em nossa sociedade. Não passarão!

Cadastrado por

MANOELA ALVES

Publicado em 15/06/2024 às 0:00 | Atualizado em 15/06/2024 às 6:44
A justiça e o aborto - Thiago Lucas

Como professora de Direito Constitucional e defensora dos direitos fundamentais, acompanhei com profunda indignação o que transpirou recentemente na Câmara dos Deputados. Em uma votação relâmpago, que durou apenas 23 segundos, a urgência de um projeto de lei que propõe equiparar o aborto a homicídio foi aprovada sem o mínimo debate parlamentar ou escrutínio público. Um verdadeiro absurdo que subverte os princípios democráticos de transparência e deliberação legislativa, além de constituir uma agressão direta aos direitos das mulheres. Um ataque calculado contra os direitos reprodutivos, disfarçado de preocupação moral. Acelerar uma legislação tão controvertida e de consequências tão profundas para a vida e liberdade das mulheres, sem o debate adequado, é um ato de violência institucional e um desrespeito flagrante ao processo legislativo que deveria proteger, não prejudicar, as cidadãs e os cidadãos que ele serve.

Em nossa sociedade, perpetua-se um ciclo vicioso de violência e culpabilização das vítimas. Isso acontece de forma sistemática entre pessoas pobres, negras e periféricas, mas é especialmente flagrante quando se trata de nós, as mulheres. No Brasil, há uma cultura arraigada que criminaliza a mulher, onde as decisões sobre seu próprio corpo são impostas sem a devida consideração por suas vozes ou circunstâncias. Frequentemente, discussões sobre nossos direitos reprodutivos acontecem sem audiências públicas ou qualquer forma de diálogo aberto e respeitoso.

Em casos de estupro, a vítima é frequentemente responsabilizada pelo crime - culpada pelo que vestia, se consumiu álcool ou por uma miríade de outros fatores irrelevantes. Uma mentalidade injusta, cruel e profundamente danosa. Passa da hora de aprender que a culpa nunca deve recair sobre a vítima. Chega de perpetuar, normalizar e normatizar a injustiça e a violência institucionalizada. É preciso romper com esses ciclos e iniciar um processo de construção de uma sociedade baseada pelo respeito e proteção verdadeira às liberdades fundamentais das mulheres.

As consequências de um projeto como este serão devastadoras principalmente para as mulheres mais vulneráveis de nossa sociedade. Mulheres pobres, que vivem nas periferias, mulheres negras, e as crianças - as meninas - que são vítimas desse crime horrendo que é o estupro, enfrentarão os impactos mais severos dessa legislação draconiana. Ao invés de oferecer proteção e justiça, o projeto amplia o abismo de desigualdade e desamparo. Fundamental que concentremos nossos esforços na criação e fortalecimento de políticas públicas que protejam essas vítimas e promovam seus direitos, ao invés de empurrá-las para a marginalização.

A manobra observada na Câmara dos Deputados torna-se ainda mais alarmante diante das revelações dos bastidores, que apontam um forte lobby religioso influenciando decisões políticas. Uma influência que evidencia um grupo político que parece negligenciar seu compromisso com o mandato e com os interesses maiores do Brasil. Ao misturar política e religião, uma facção do legislativo busca impor a agenda ideológica que está desconectada das reais necessidades e desafios enfrentados pela sociedade brasileira.

A tentativa de legislar com base em crenças pessoais ou doutrinas religiosas em detrimento de uma análise racional e laica é uma afronta à nossa Constituição, que preconiza a separação entre Estado e religião. Essa confluência perigosa compromete a imparcialidade necessária nas decisões legislativas, além de ameaçar os direitos e liberdades fundamentais de todos os brasileiros e brasileiras, especialmente das mulheres, que se veem cada vez mais oprimidas por pautas que não dialogam com a pluralidade e a complexidade do nosso país.

Precisamos falar sobre aqueles que cometem essas violações, buscando não apenas puni-los mas também prevenir futuras atrocidades através de educação, apoio social e medidas legais que efetivamente defendam e respeitem a dignidade de todas as mulheres. Esse projeto de lei, em contraste, é um descalabro que não faz nada além de perpetuar a violência e o sofrimento.

Frequentemente, critica-se o Supremo Tribunal Federal acusando-o de ultrapassar suas competências e atuar além dos limites da jurisdição judicial, quase como se legislasse. No entanto, a realidade que observamos no Congresso Nacional, onde legisladores empregam manobras para impor legislações opressivas, justifica e até demanda que nossas instituições intervenham firmemente, sempre dentro dos limites constitucionais, para preservar a integridade da democracia.

Neste momento crítico de nossa história, a importância de uma resposta firme da sociedade e das instituições é indiscutível diante do cenário de retrocessos que se desenha. É essencial que todos os setores da sociedade se mobilizem e levantem suas vozes contra essas tentativas de distorcer os princípios democráticos e usar o poder legislativo para oprimir minorias. O momento exige mais do que indignação passiva; exige ação concreta e determinada. Precisamos reagir, garantindo que cada mecanismo de defesa da liberdade e dos direitos humanos seja empregado para combater essas investidas contra as mulheres. A luta é dura, mas necessária para assegurar que os valores da justiça e da democracia prevaleçam em nossa sociedade. Não passarão!

Manoela Alves, professora, advogada e diretora do Instituto Enegrecer

 

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