Por isso, cabe a pergunta: qual é a relação entre a aldeia Pedra d'Água em Pesqueira, onde o cacique Xicão está sepultado, e o monarca português D. João VI? Para responder essa pergunta é necessário remontar a uma petição elaborada pelos próprios indígenas em 1830, destinada ao Imperador do Brasil, D. Pedro I.
Na missiva, os indígenas pediram que o Imperador atuasse com justiça no sentido de conceder-lhes auxílios para voltar para suas terras. Desde 1824 viviam em Alagoas devido a perseguições realizadas por um capitão-mor da localidade. Após troca de documentos entre ministro, presidente de província e diretor do aldeamento, os indígenas conseguiram a restituição de dois sítios, sendo um deles o Pedra d'Água.
As perseguições sofridas em 1824 eram reflexos diretos do posicionamento político dos indígenas de Cimbres sobre a Confederação do Equador: eles defendiam D. João VI! Ou seja, eram contrários ao governo confederado e, ao mesmo tempo, opositores do projeto centralizador do Rio de Janeiro. Ao invés de chamá-los de "fanáticos monarquistas", como consta nos registros da época, faz mais sentido, a partir dos critérios de produção científica da História, procurar entender os motivos dos indígenas a partir das dinâmicas sociopolíticas locais.
As décadas de 1810 e 1820 foram marcadas por recrutamentos forçados dos indígenas e pela tentativa de extinção do aldeamento pela câmara da vila de Cimbres. Os indígenas, então, interpretaram à sua própria maneira as disputas entre diferentes projetos políticos a partir das suas experiências, principalmente em relação ao agenciamento de sua força de trabalho e ao esbulho de suas terras coletivas. Território reconhecido formalmente desde a concessão como sesmaria no século XVII!
Defender D. João VI, portanto, deveria parecer mais importante do que apoiar um novo governo que sequer havia tentado dialogar com os indígenas de Cimbres. Quais direitos seriam assegurados pelos confederados ou pelo Rio de Janeiro? Como resultado da escolha política ousada em 1824, sofreram nova tentativa de recrutamento forçado e algumas lideranças foram objeto de uma devassa. Resistiram e foram perseguidos. Esse episódio foi descrito por Pereira da Costa e Nelson Barbalho como uma chacina. Muitas famílias indígenas migraram para Alagoas em busca de melhores condições de vida, sem esquecer, contudo, as terras que precisaram deixar para trás. Daí a reivindicação de serem reempossados nos sítios em 1830, estando entre eles o Pedra d'Água.
No século XX, o sítio Pedra d'Água foi novamente objeto de disputas. Pesqueira havia substituído Cimbres como sede da povoação, sendo constituído como município desde 1893. Ali, em 1947, foi criada a Liga Camponesa Clementino da Hora, nome de um indígena xukuru que teve papel importante em combates da Guerra do Paraguai (1864-1870). Nesse período, os Xukuru também eram identificados nas fontes como "índios de Cimbres" ou "caboclos da serra de Ororubá". Uma das pautas centrais da Liga era a retomada do Sítio Pedra d'Água, ação que foi colocada em prática em 1963. Com o início da ditadura civil-militar, os indígenas foram submetidos a outra devassa, dessa vez, intitulada processo de investigação sumária, para apurar o que foi considerado uma "invasão" pelas autoridades e jornais da época.
Retirados novamente dessas terras, os Xukuru fizeram outra investida em 1990, com o objetivo de restituir o sítio, afirmando que ali era um local importante para a realização de seus rituais. Foi a terceira retomada de Pedra d'Água! Uma marca significativa na trajetória política dos Xukuru que, a partir de então, fortaleceram o movimento de retomada de outras áreas invadidas por fazendeiros, conquistando a Terra Indígena demarcada em 2001. Naquele local, são realizadas as Assembleias do Povo Xukuru do Ororubá, e estão sepultados o cacique Xicão, assassinado em 1998, e outras lideranças das mobilizações pela demarcação de terras. O antigo sítio, hoje aldeia, Pedra d'Água é então revestido de significados históricos, políticos, simbólicos e rituais ineludíveis.
Com toda a razão (histórica!) os povos indígenas reunidos em Brasília no Acampamento Terra Livre de abril de 2024 declararam que o seu marco é ancestral e que sempre estiveram aqui. Evocando os cinco séculos de colonização, reforçaram a sua permanência firme nas terras que reivindicam. Quando o passado e o presente se iluminam mutuamente, casos como o do sítio/aldeia Pedra d'Água deve ser visto como exemplo de persistência dos povos indígenas e da incontornável conexão com o território de seus antepassados.
Mariana Albuquerque Dantas , doutora em História pela UFF e professora do Departamento de História da UFRPE