OPINIÃO

Um passo adiante contra o etarismo

A decisão do Supremo Tribunal Federal permitindo que pessoas 70 possam escolher o regime de bens que melhor lhes convier no casamento ou união estável, mais do que histórica, é justa e oportuna.

Cadastrado por

GISELE MARTORELLI

Publicado em 09/05/2024 às 0:00 | Atualizado em 09/05/2024 às 10:18
Mais idosos: número de idosos no Brasil cresceu 54.4% em 12 anos, segundo o censo do IBGE - Imagem: Pexels

No rastro de condutas sociais que se agrupam para invisibilizar minorias, retirando-lhes opções, o etarismo tem despontado como um emergente campo de batalha.

O número de idosos no Brasil cresceu 54.4% em 12 anos, segundo o censo do IBGE referente a 2022. Nesse espaço de tempo, é também justo afirmar que a velocidade das transformações do tecido social colocou uma distância ainda maior no que era a percepção de "velhice" de então e o que ela representa agora. O crescimento exponencial da população idosa em nosso país (cidadãos e cidadãs com idade superior ou igual a 60 anos) indica uma necessidade de ir além de importantes conquistas como gratuidade, proteção e prioridade: é preciso redirecionar o olhar para questões como validação, inserção e autonomia desse contingente.

Ao agrupar, sem distinção, sob o rótulo de "idoso" uma faixa etária que, de tão larga, vai dos 60 aos 100 anos, dilui-se o foco sobre uma questão central, que é justamente a que permeia a decisão do STF: capacidade de gerenciamento sobre as individualidades. As forças que atuam para mistificar o idoso como alguém inepto são abrangentes, poderosas e multidirecionadas, indo desde a exclusão do mercado de trabalho até considerações apriorísticas sobre competências que envolvem atividades banais do cotidiano. A falsa similaridade entre o idoso autônomo e o idoso limitado por declínio fisiológico passa a ser, assim, abarcada pela narrativa geral como uma verdade indisputada.

A decisão unânime do STF, tomada em 01/02/2024, declarou a possibilidade de pessoas acima de 70 anos afastar a aplicação do regime da separação obrigatória de bens, prevista no art. 1.641, II, do Código Civil. A resolução partiu da compreensão do Plenário de que manter a obrigatoriedade da separação de bens desrespeita o direito de autodeterminação das pessoas idosas. Reconhecimento tardio, embora bem-vindo, de que a vida se desenrola dentro e fora de nós numa concepção de plenitude que envolve, sim, escolhas que consideramos apropriadas para o nosso "agora" e não apenas para o nosso "amanhã".

Na prática, o STF estabeleceu que a separação obrigatória de bens, para as pessoas acima de 70 anos, só vigorará na ausência de Pacto Antenupcial ou de Convivência, estabelecendo outro regime patrimonial, como a comunhão universal, parcial ou separação total de bens. Além disso, o STF definiu que pessoas acima dos 70 anos, que já estejam casadas ou em união estável, também podem alterar o regime de bens, mas é necessário autorização judicial, no caso do casamento, ou manifestação em escritura pública, no caso da união estável. O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, apontou que a não manifestação prévia sobre o regime de bens faz com que continue valendo a regra do Código Civil, ou seja, a separação obrigatória de bens. A solução dada pelo STF só poderá ser aplicada em casos futuros, pois, do contrário, haveria risco de reabertura de processos de sucessão já finalizados, produzindo insegurança jurídica.

O fato de a discriminação por idade ser vetada pela Constituição Federal deve ser o ponto focal nesta matéria. O mais impressionante não é que tenha havido uma revisão dessa determinação anômala, mas que a mudança tenha surgido só agora. Essa constatação reforça a visão preconceituosa que vem sendo exercida em várias esferas da vida social, empurrando idosos em plena posse de suas faculdades mentais para condição similar à de tutelado. Ver o poder de decisão sobre nossas vidas nos ser negado é algo que, em algum momento, vivenciaremos por um motivo ou por outro. Quem já sentiu na própria alma esta desapropriação de autonomia pôde ter um pequeno vislumbre do que nos espera na velhice se não começarmos a tomar as rédeas do nosso presente de modo a guiá-lo a um futuro que será, sim, majoritariamente ocupado por aqueles que já acumularam seis ou mais décadas de experiência.

Giselle Martorelli, advogada

 

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