Uma das grandes fake news difundidas nos últimos anos, sobretudo quando se quis "mandar recados" ao Supremo Tribunal Federal, foi a de que as Forças Armadas teriam a legitimidade, uma vez convocadas a tanto pelo chefe do Poder Executivo, para atuação como Poder Moderador, restabelecendo a lei e a ordem. Nada mais equivocado. De fazer revirar-se na sepultura o cadáver de Rui Barbosa.
No Estado Democrático, a nossa baliza reside no artigo 142 da Constituição de 1988, de acordo com o qual o Exército, a Marinha e a Aeronáutica são instituições permanentes e se destinam à defesa da pátria, à garantia dos reais poderes, e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Implica dizer que as Forças Armadas não são instituições de Governo e que os seus fins são militares e não de intervenção política. Logo, elas não trazem consigo a previsão de funcionarem como um Quarto Poder, e, tanto mais expansivamente, como um Poder Moderador no que toca aos demais.
A figura do "Poder Moderador" existiu, de fato, no período do Brasil Império e era exercida pelo regente (Dom Pedro II), perdendo força paulatinamente com a criação do Conselho de Ministros (pelo próprio regente). Quando o Brasil proclamou a República, o denominado Poder Moderador deixou de ter previsão no texto constitucional. Seu lugar passou a ser o museu. Na República, o Brasil abriga uma tripartição e não uma tetrapartição dos Poderes ou funções do Estado (lato senso).
De inspiração francesa, com âncoras nos escritos de Benjamin Constant, adversário de Napoleão e um dos mais festejados teóricos do liberalismo, o Poder Moderador era o poder neutro que, contrastando com os demais, deveria se colocar acima deles para intervir em contextos de gravidade.
A mera cogitação de algo que o sistema constitucional não mais prevê, e não a ideia em si, é o real inimigo a ser derrotado. Nessa linha, Fernanda Delgado (CONJUR, 26/8/2021): "A doença não é o poder moderador, mas a imoderada interpretação sobre ele, que o perverte, assim como os germes homicidas pervertem o organismo. A força militar é a expressão armada da nação e do povo, visa a defendê-los, não é o Estado dentro do Estado, sob pena de ditadura". Prossegue: "Às Forças Armadas incumbe a guarda e a defesa nacional, e não o exercício de um poder. Desde a proclamação da República, a destinação constitucional das forças armadas é, essencialmente, obedecer ao poder civil".
O terraplanismo hermenêutico não merece passar. Como pontua com razão Paulo Calmon da Gama (CONJUR, 8/7/2022), "uma pessoa leiga (ou até de áreas inespecíficas da ciência) defender o terraplanismo em pleno século 21 é desalentador, mas vá lá. Para um astrônomo, complica. E muito. É inconcebível. Uma pessoa leiga (ou até juridicamente letrada) embarcar no ilusionismo do triplo carpado hermenêutico do poder moderador é triste. Para um constitucionalista, então…".
O STF (em plenário virtual) iniciou a discussão (que vai até o próximo dia 8/4), espera-se definitiva, do assunto em sede de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo PDT. Trata-se da ADI 6.457, sob a relatoria do Ministro Luiz Fux. Busca-se interpretação para exatamente assentar de uma vez por todas o que, na verdade, o texto constitucional já diz. Questiona-se, igualmente, a interpretação de dispositivo da Lei Complementar Regulamentadora nº 97/1999.
O Ministro Relator fixou em seu Voto premissas que assim se resumem: (1) A missão institucional das Forças Armadas não envolve o exercício de um poder moderador entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário; (2) Não é possível qualquer interpretação que permita o uso das Forças Armadas para 'indevidas intromissões' no funcionamento dos outros poderes; (3) A prerrogativa do Presidente da República de autorizar o emprego das Forças Armadas "não pode ser exercida contra os próprios poderes entre si".
A fórmula democrática é um preparado sensível, de paladar refinado. Nela não se substitui um ingrediente essencial por outro ou a receita perde o ponto. É bom ter cuidado com os alquimistas do culinarismo que vende gato por lebre, flautistas de Hamelin. Estas é que são as quatro linhas da Constituição.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado