Da lembrança e da gratidão: aos 90 anos de uma educadora.
Você me fez entender que um professor pode ser muito bom no que faz, conhecer muito sua matéria; mas um educador faz outra coisa: ele apresenta o Mundo a quem chega nele e que precisa de nossa ajuda, e mostra os riscos que corremos com nossa presença num Mundo, ao mesmo, tempo generoso e perigoso.

Lembra quando em uma de tuas aulas, no Colégio de Aplicação, sobre a Semana de Arte de 22, nós inventamos as "72 HORAS DE ARTE" do CAp? Lembra de um poema que escrevi, naquela ocasião, dizendo que a "hóstia do Cristo não matava a fome de ninguém", e que deu a maior confusão (estávamos em 1973)?
Lembra quando eu desisti do curso de Arquitetura para fazer História e minha mãe, Ismaília, danou-se comigo e foi você quem a acalmou?
Lembra quando fomos demitidos do Instituto Capibaribe - eu estava começando a profissão!- porque a Diretora, Dona Raquel, achava que tinha "esquerdista" demais naquele grupo?
Lembra da reunião na casa de Doza, ali na Torre, que criou a Escola Parque do Recife, em que Edla Soares estava presente?
Lembra quando o pai de Mendoncinha pediu a minha cabeça na Escola Parque e você e Doza não aceitaram, tudo por causa de uma pecinha de teatro de Brecht que eu pedi aos alunos para lerem?
Lembra quando, certa vez, eu e Claudinho chegamos de Olinda às 8 da manhã do dia seguinte, embriagados, e você não conseguira dormir e quando nos viu chegar, gritou lá do primeiro andar: - "Vocês dois resolveram viver os últimos dias de Pompéia?"
Lembra quando você terminou de corrigir minha dissertação de Mestrado sobre o Partido Comunista e me perguntou: - "Sua irmã Iara já leu isso?"
Lembra da cachorrinha Joy, um amor?
Lembra das gostosas risadas de Dr. Cláudio assistindo à peça Frei Serafim?...
... são apenas lembranças esparsas, minha querida Mestra Myrtha Carvalho.
* * *
Mas agora que você vai completar 90 anos, é o momento oportuno de te dirigir duas ou três palavrinhas de agradecimento.
Acho, Myrtha, que o que vale mesmo não é o que deixamos PARA os outros, mas o que deixamos NOS outros: que marca, que registro, que impressão capaz de orientar toda uma vida. Foi graças à sua presença em minha vida, desde os meus 12 anos, quando éramos vizinhos ali na Madalena e eu pegava carona todos os dias com você para ir pro Colégio e, em seguida, como minha professora de Literatura e Língua Portuguesa e, mais tarde, como colega de profissão na Escola Parque e depois no Centro de Educação, que eu percebi claramente a diferença entre ser um simples professor e ser um educador: foi quando você me fez entender que um professor pode ser muito bom no que faz, conhecer muito sua matéria; mas um educador faz outra coisa: ele apresenta o Mundo a quem chega nele e que precisa de nossa ajuda, e mostra os riscos que corremos com nossa presença num Mundo, ao mesmo, tempo generoso e perigoso. Formar é diferente de instruir: instrução é MEIO, formação é FIM, e conhecimento sem predicados morais, dizia Montaigne, é a ruína da vida!
Aprendi a ouvir e a conversar (nos dois sentidos latinos da palavra!) com crianças e com jovens que queriam, por sua vez, também serem professores, e foi graças a você que fui capaz de me dar este valiosíssimo presente a mim mesmo: SER PROFESSOR! Quer dizer: saber que não verei o fim de minhas ações, sei apenas começá-las e deixar que nossos educandos façam o resto. Aos 90 anos, ao menos espero que você saiba que eu, seu aluno e filho adotivo, fiz todo o esforço possível para honrar sua presença na minha vida e a herança intelectual e moral que você me deixa.
Invade-me, no momento em que finalizo este artigo, um imenso sentimento de "gratidão existencial", aquela mesma que nunca se poderá pagar!
(Para Myrtha Carvalho pelos seus 90 anos)
Flávio Brayner, professor