O leitor atento da coluna (e espero que exista) já percebeu a nova entonação depois de alguns meses. Ficaram de lado, subalternos, escondidos, os motivos políticos, e a arte, notadamente a literatura, voltou a ocupar espaço. Minha paixão por Lorca já levou duas colunas. Isso tem razão de ser: a democracia reclamava atenção, estava ameaçada, e as baterias tiveram que ser assestadas contra a tirania. Triunfando, a democracia já não necessita de tantas palavras, ela é melhor assim, um estado em que tudo é normal, as ideias se trocam, as propostas são ouvidas aqui e ali com interesse ou pouco, os embates são normais e, educados ou não, fazem parte da vida como pão e manteiga. Lembra-me quando a ditadura foi, enfim, derrotada, tínhamos a sensação de vazio, demorou até recuperarmos a nostalgia do cotidiano. Benditos momentos restaurados e, para alguns, nunca conhecidos. Pois é mais ou menos onde nos encontramos; sendo que, com a experiência de antanho, é mais fácil retomar a vida normal.
A editora Todavia acaba de lançar Os Últimos Contos de Anton Tchékhov, em minha opinião e na de muitos, o maior contista russo (e olhe que Tolstói escreveu uma profusão de contos). Tchékhov viveu naquele período iluminado do final do século XIX e início do século XX, e testemunhou a rápida mudança que se instalava na Rússia feudal e czarista, descrevendo com maestria a vida do camponês, do médico, do militar, do funcionário público, de todos os tipos da sociedade da época, com uma linguagem simples e poderosa. Apesar da ausência de peripécias, conflitos, revelações e epifanias, características que a maioria dos autores atribui ao conto, a descrição singela de acontecimentos cotidianos, em que a filosofia do contista se impõe de maneira escultural e leve, é deslumbrante e toca à alma como poucos. O conto Um Caso Médico, por exemplo, narra a visita de um médico à casa da viúva de um industrial cuja filha tem uma doença jamais diagnosticada, e ali o médico se vê obrigado a passar a noite; não conseguindo dormir, o doutor faz reflexões sobre o trabalho dos operários, a governanta que usufrui de toda a estrutura e conforto da casa, a paciente bem frágil e a mãe imbecilizada, chegando à conclusão de que a engrenagem de milhares de operários e centenas de pessoas em que só dois ou três proprietários tiram proveito dos lucros, na verdade, só favorece a governanta, que come esturjão e bebe vinho madeira, sendo a única pessoa verdadeiramente feliz e tranquila no meio disso tudo. Mas logo conclui: a governanta não passa de um preposto, o chefe mesmo, para quem tudo se produz, é o diabo. O drama da paciente e das duas outras personagens não importa, a reflexão noturna do doutor sobre as condições sociais da época é o verdadeiro núcleo do conto.
Nem sei por que falo de Tchékhov, poderia também falar de dois filmes ótimos, Napoleão e Segredos de um Escândalo. O importante mesmo é que, sem o diabo, a gente pode ler e ir ao cinema.
João Humberto Martorelli, advogado