OPINIÃO

Qualidade de ensino

O verdadeiramente interessante em tudo isso, é a nossa capacidade social, política e pedagógica de inventar mecanismos "democráticos e igualitários" capazes de reproduzir a desigualdade, a incultura, a exclusão!

Cadastrado por

FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 06/02/2024 às 0:00 | Atualizado em 06/02/2024 às 6:26
Qualidade de ensino: desafio permanente da escola brasileira - DIVULGAÇÃO

É difícil conceber que a décima primeira economia do mundo - o Brasil- tenha índices tão alarmantes em sua educação, do fundamental ao superior, passando pelas modalidades específicas (Jovens e Adultos, Cursos Técnicos,...): ou educação e desenvolvimento econômico não tem relação necessária (e a ideia de Economia do Conhecimento é uma balela!), e, assim, uma economia pode se desenvolver mantendo a maior parte de sua população na miséria cultural. Ou para o desenvolvimento econômico basta importar o saber dos outros! Os índices de ranqueamento, de classificação internacionais dos padrões nacionais de educação escolar partem de pressupostos que precisam de esclarecimento. O curioso é achar que o conceito de "qualidade da educação" é universal e os sistemas são "comparáveis" a partir de critérios elaborados por economia hegemônicas, visando uma padronização dos processos formativos, ou seja: um projeto global de subjetivação retirando nossa soberania avaliativa!

Até os anos 80 praticamente não se fazia exames nacionais ou locais de avaliação de desempenho escolar, embora estivesse já claro que nós tínhamos aquelas redes que Christóvam Buarque chamou de "escola senzala" e "escola casa-grande", quer dizer, a definição social prévia dos itinerários escolares em função da origem de classe: sistema SS (Secundário propedêutico e Superior para os ricos) e PP (Primário e Profissional para os pobres). Seja como for, qualquer que seja a ideia de qualidade da educação ela está ligada a uma história social e determinadas expectativas de formação: é o que chamamos de "EDUCAÇÃO DE QUALIDADE SOCIALMENTE REFERENCIADA". É que faz da escola aquilo que Luiz Dourado chamou de "epicentro": nenhuma política escolar isolada é capaz de produzir "resultados" escolares independentes das condições sociais, culturais e econômicas em que vive sua clientela: só políticas republicanas e cidadãs articuladas e factíveis, envolvendo diferentes setores sociais, podem obter frutos favoráveis. Formação de professor, valorização do magistério, carreira profissional definida, acesso a bens culturais, apoio familiar, emprego, presença dos pais na escola, boa gestão institucional, políticas pedagógicas claras e elaboradas com a presença de educadores (universidade e sistemas locais), segurança pública, saúde coletiva, financiamento público e, claro, tornar a escola um lugar atraente e de importância substantiva para os educandos (o que não se faz só com smarthphones!).

O problema é o avanço das concepções econômicas ultraliberais, invadindo todos os aspectos de nossa existência (algo verdadeiramente "hegemônico") e definindo exigências escolares voltadas para a formação de um tipo de subjetividade: um sistema escolar que produz "resultados" pode ser qualquer coisa, menos "pedagógico" (pedagogia não é o Reino dos Resultados, ou um sistema...RR!), e saber ler, escrever e contar (o tríptico republicano clássico da escola francesa), não é mais suficiente numa época que exige da CIDADANIA predicados que não estavam presentes naquele momento revolucionário. O problema é que obter "resultados" para expor numa vitrine política como "avanços na educação", em índices e escores de aprendizagem da língua ou de resoluções matemáticas, apenas assinalam a aquisição (duvidosa!) de meios, instrumentos sem oferecer as alternativas que poderiam ir muito além da "empregabilidade", "competitividade", "inovação", "flexibilidade", "espírito de equipe", "resiliência", "proatividade"... e quejandos!

O professor e pesquisador João Zirpoli, em sua tese "Escolas em tempo integral", defendida há alguns anos na UFPE (2017), mostrou a partir da investigação de Escolas de Referência (o modelo vinha do "choque de gestão" de Aécio Neves!) do Recife (entrevistando alunos, professores e gestores sobre o tema da "qualidade" sobre o ENEM de 2013) que os resultados são preocupantes: em primeiro lugar, pela polissemia do termo -as interpretações são diferentes-; os "resultados" escolares não foram melhores do que eram antes da implantação da Escola em Tempo Integral; os exames de aferição de aprendizagem voltados para o treinamento para responder "certo" às avaliações, e o projeto político pedagógico centrado num determinado conceito de mercado e a partir de questões conteudísticas e técnicas: estávamos dando os primeiros balbucios do abandono da ideia de formação cidadã, voltada para a atribuição de qualidade e predicados capazes de oferecer a cada egresso de um sistema a capacidade de pensar, falar, argumentar, se colocar no lugar do outro, julgar e decidir no interior daquilo que chamamos de espaço público, hoje tão fragilizado!

Zirpoli observa ainda que o ranquamento não serviu para nada: nenhuma medida pedagógica ou gestionária corretiva fora tomada diante dos resultados da avaliação. Breve: nem integração ao mercado, com vistas à formação e realização do "aluno empreendedor" (outra balela!), nem a formação subjetiva do cidadão. O verdadeiramente interessante em tudo isso, é a nossa capacidade social, política e pedagógica de inventar mecanismos "democráticos e igualitários" capazes de reproduzir a desigualdade, a incultura, a exclusão!

Flávio Brayner, professor

 

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