O Brasil é o país com a maior população católica do mundo, pelo menos em números. Segundo uma pesquisa sobre crenças realizada em 2022 pelo DataFolha, até então, 51% dos brasileiros eram declaradamente católicos. Para além de uma análise mais restrita àqueles que praticam a religião, pensemos em uma das implicações desse dado: a orientação política dessas pessoas.
Apesar de o ditado popular afirmar que futebol, política e religião não se discutem, a interseção entre os temas tem sido cada vez mais comum. Perpassa discursos políticos, conteúdos nas redes sociais e também o noticiário - sobretudo, com algumas posições do atual sumo pontífice, Papa Francisco, que ainda geram interesse num mundo cada vez mais secularizado. Ou, num caso mais próximo, na polêmica envolvendo o trabalho do Padre Júlio Lancelotti em São Paulo.
Diante disso, surge a questão: em termos políticos, o catolicismo é de direita ou esquerda? Por familiaridade, trato da doutrina católica e não de todo cristianismo, entendendo a existência de diferentes vertentes e percepções. Assim, para um católico, a divisão usual entre direita e esquerda
tem traços diferentes; em estrito senso, não são (ou não deveriam ser) nem uma coisa, nem outra. Primeiro, a crença na filiação divina como fonte última da dignidade humana não permite admitir a usurpação da liberdade individual por parte do Estado. Ou seja, o direito à propriedade, à livre iniciativa, à prática pública da fé e valores dos quais decorrem a defesa da diminuição do Estado, como redução de impostos e desburocratização, são bandeiras comumente levantadas pela direita e dialogam com a doutrina social da Igreja.
De outro modo, a mesma crença na dignidade da filiação divina - e na comum fraternidade, portanto -, não permite enxergar com bons olhos a meritocracia como desculpa ao egoísmo. Dar esmolas, ajudar os necessitados, "dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar abrigo aos peregrinos", são orientações de Jesus Cristo e fonte de glória dos santos ao longo da história. Por isso, o individualismo puro, materialista, avesso à caridade, também não pode ser aceito.
Se o amor é a perfeição da virtude, uma sociedade tanto mais será virtuosa quanto mais entranhada dos valores de misericórdia, em nível individual e coletivo. Essa destinação universal dos bens, por vezes deturpada pela esquerda, porém identificada com o seu discurso político, dialoga com a doutrina social da Igreja.
Marxistas puros olharão para os fundamentos católicos e verão neles um elemento de opressão, uma prisão para as classes marginalizadas; um pensamento que deve ser eliminado, ou, no máximo da benevolência revolucionária, reinterpretado à luz do materialismo histórico a fim de que, purificado daquilo que é incompatível com os princípios revolucionários, sirva de ferramenta à revolução.
Liberais puros olharão para a doutrina católica e verão nela um elemento de atraso, uma superstição de tempos passados a submeter as mentes, algo como resquício de algum movimento involuntário do neandertal residual que habita em nós e que, em plena era da abundância, das conquistas, dos direitos, da ciência, ainda nos atrasa. No máximo de sua benevolência materialista, darão ao catolicismo o aplauso condescendente que se dá como agrado a algum funcionário que cumpriu bem o seu dever menor, mas que agora deve retirar-se e deixar os patrões discutirem coisas realmente relevantes.
Ambas, esquerda e direita, são visões ideologizadas da realidade e padecem do mesmo problema que qualquer ideologia: a tentativa de enquadrar a complexidade do real numa faixa estreita de percepção do mundo. O ideólogo, qualquer deles, é como uma criança com brinquedo de encaixe, lutando para pôr, à força, uma peça quadrada dentro de um círculo. Assim, um "cidadão de bem" crente no deus mercado e um "esquerdista" crente no deus estado não são tão diferentes; aliás, são irmãos de fé: oferecem sacrifícios no mesmo templo, incensam a mesma divindade materialista, batizam-se na mesma revolta e comungam, enfim, do mesmo pão.
Naturalmente, por conta das circunstâncias, pode acontecer de que os católicos sejam chamados a unir se pontualmente a uma dessas duas forças políticas. Mas, a adesão de ordem prática jamais deve ser confundida com aceitação irrefletida. Deixemos de pensar unicamente em termos de esquerda e direita e olhemos para a realidade de maneira mais profunda. Quando o mundo em volta começa a ruir, é preciso manter a sanidade e nos sustentar em terreno que é sólido.
Vida espiritual, intelectual e em comunidade. Famílias generosas, coragem para empreender, ânimo para ajudar e nobreza para deixar legados. Uma vez que sejam essas as preocupações, as questões partidárias do momento começam a ganhar seus contornos reais. Importantes, claro, mas secundárias. Ou, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Ighor Branco, cientista político.