ENTREVISTA | Notícia

'Me reconheço no trabalho da Duda Beat ou do Jota.pê', diz Lenine. Confira entrevista

Cantor levará o show de 30 anos do clássico 'Olho de Peixe', disco com Marcos Suzano, ao Carnaval do Marco Zero do Recife: 'Permaneceu como farol'

Por Emannuel Bento Publicado em 28/02/2025 às 9:45 | Atualizado em 08/03/2025 às 18:12

Há 32 anos, Lenine fez história na música brasileira ao lado do percussionista Marcos Suzano, ao lançar o disco "Olho de Peixe", que catapultou o pernambucano ao estrelato.

A dupla arquitetou um trabalho de voz, violão e percussão que conseguiu dialogar com várias sonoridades e manifestações culturais brasileiras, como uma "síntese".

Neste Carnaval, Lenine leva o show de 30 anos do disco ao Marco Zero na Terça-feira Gorda (04/03). Vale lembrar que é desse álbum um dos hinos do carnaval pernambucano: "Leão do Norte".

A agenda do músico não para por aí. Além de ter tocado na abertura do Carnaval de Olinda, ele também leva o show do disco para o Polo da Lagoa do Araçá e fará show do projeto Lenine & Spok Frevo Orquestra em Bezerros, no Agreste.

Em entrevista ao JC, Lenine refletiu sobre o legado do "Olho de Peixe" e como ele reverbera em novas gerações: "Quando vejo uma Duda Beat ou um Jota.pê, me reconheço no trabalho deles. A maneira como toco violão, a forma como consegui equilibrar sons e palavras, tudo isso acredito que influenciou muita gente".

Entrevista - Lenine

Como é levar o show de 30 anos de 'Olho de Peixe' para o Marco Zero do Recife, tendo em vista que ‘Leão do Norte’, um dos sucessos do álbum, é praticamente um hino do carnaval pernambucano?
Primeiramente, preciso ser honesto ao dizer que o convite partiu da Prefeitura. Eu havia comemorado, no ano passado, os 30 anos do álbum Olho de Peixe e fiz algumas apresentações, embora em poucos lugares, como uma forma de celebrar a importância desse trabalho para mim, para o Suzano e como ele alavancou minha trajetória pessoal. Quando a Prefeitura me convidou para levar "Olho de Peixe" ao Marco Zero, recebi essa proposta com muito orgulho. Com esse convite, tivemos a oportunidade de ampliar essa celebração.

A primeira metade dos anos 1990 assistiu a muitos momentos em que a música popular passou a olhar novamente para os regionalismos como potência, como ocorreu com o manguebeat ou até o sucesso da axé music. Você acha que o "Olho de Peixe" se encaixar nesse contexto?
Sim, eu acredito que, mais do que tudo, isso tem a ver com o que chamo de música contemporânea brasileira. Acho que Milton Nascimento, quando surgiu para todos nós, inaugurou esse novo momento da música brasileira. A música contemporânea, que não está apenas vinculada à arte popular criada neste país, mas também às influências ocidentais, europeias, ibéricas, africanas e indígenas, somadas a tudo isso. Milton levou tudo a um patamar sublime.

Acho que "Olho de Peixe" e muitas outras coisas que surgiram após essa exuberância de Milton Nascimento foram marcos de um processo de renovação. De alguma maneira, acredito que o álbum reverberou esse movimento, mas também tem as características de raiz que dialogam com o mundo. A grande riqueza que conseguimos alcançar é que a música poderia ser compreendida em qualquer parte do globo. Não apenas por causa disso, mas principalmente por isso, ela tem uma importância histórica na música brasileira.

SELMY YASSUDA/DIVULGAÇÃO
Imagem de Lenine e Marcos Suzano, parceiros em 'Olho de Peixe' - SELMY YASSUDA/DIVULGAÇÃO

Ao circular pelo País com a turnê dos 30 anos, conseguiu perceber como o ‘Olho de Peixe’ segue reverberando em novas gerações? Existe um discurso de que muitos jovens não têm mais acesso a albuns importantes da historiografia musical brasileira.
A indústria mudou tanto, a forma de propagação da música, o método de lançamento. Tudo mudou. Fica mais difícil alcançar mais pessoas, porque tudo está pulverizado. Há infinitamente mais gente criando e produzindo, e permanece a pergunta: como chegar a todos?

Acredito que, na medida do possível, "Olho de Peixe" permaneceu ali como um farol, sempre alimentando e sendo alimentado por novas gerações, reverberando a importância da hibridização que conseguimos fazer. Nos poucos lugares em que fizemos apresentações, ficou evidente isso: havia famílias, pais, filhos e netos assistindo ao show e compartilhando esse conhecimento.

Como se fosse uma joia rara, e isso reverberou muito nas gerações mais novas. Os filhos dos pais que acompanharam cronologicamente a trajetória desse álbum, e depois com meus trabalhos subsequentes, foi uma constante evolução.

Você vê 'Olho de Peixe' inspirando artistas atuais?
Quando vejo um trabalho da Duda Beat ou do Jota.pê, me reconheço no trabalho deles. A maneira como toco violão, a forma como consegui equilibrar sons e palavras, tudo isso acredito que influenciou muita gente. Percebo, sim, muitos criadores atuais que se alimentaram desse tipo de proposta musical, que não está restrita apenas a "Olho de Peixe". Há uma independência estética que propiciou a busca constante por novos caminhos, hibridização e novos lugares no universo sonoro. Acho que isso influenciou bastante gente.

JAIRO GOLDFLUS/DIVULGAÇÃO
Imagem do cantor Lenine - JAIRO GOLDFLUS/DIVULGAÇÃO

Falando em artistas novos, tem acompanhado as novas cenas musicais de Pernambuco?
Pernambuco é um celeiro incrível de coisas maravilhosas que surgem constantemente. Confesso que tenho certa dificuldade em acompanhar tudo de perto, por conta da minha distância, já que moro no Rio de Janeiro, tenho meus filhos e já são cinco netos. Essa distância, de alguma maneira, poderia sugerir que eu não estivesse tão atento, mas isso mudou.

Hoje em dia, não é mais como era na minha época, quando tivemos que fazer o 'exílio', pois só existiam Rio de Janeiro e São Paulo como polos. A gente começou a descobrir o Brasil, as regiões do país, com suas próprias expressões culturais, e isso se deu de maneira muito bacana, propondo coisas interessantes.

Eu acredito que o que ocorre em Pernambuco é que as pessoas querem fazer seus próprios caminhos, não há ninguém copiando ninguém. Isso é instigante e sedutor na produção cultural de Pernambuco. Por exemplo, depois de todo o sucesso global de uma banda como a Nação Zumbi, seria natural surgirem outras bandas semelhantes, mas não vemos isso. O que vemos são bandas querendo encontrar sua personalidade, sua alma. Isso é muito bacana.

Há quem diga que, apesar dessa originalidade, Pernambuco não conseguiu massificar tanto a sua cultura como a Bahia fez, por exemplo.
Não concordo com isso. Basta observar: o que é o Carnaval de Pernambuco? Eu, por exemplo. Minha música não está associada à sazonalidade, como é o caso da música junina ou carnavalesca, mas eu tenho uma janela gigantesca para apresentar o meu próprio trabalho. Nos outros carnavais, vemos sempre o mesmo repertório o tempo todo, mas essas características começaram a mudar quando o Carnaval passou a ter pontos e palcos para abranger toda essa diversidade. Isso, sim, gerou uma indústria, um mercado. Criou-se isso.

Eu não concordo muito com a ideia de que não houve massificação. Nós temos, e estamos fazendo isso crescer. Veja o João Gomes, por exemplo, onde ele chegou fazendo o que faz; ele está completamente inserido nessa indústria. Estamos conseguindo, cada vez mais, ampliar essa cena e esse mercado que estamos criando. Talvez hoje em dia não seja mais necessário o êxodo, como te falei, para ir para São Paulo ou Rio de Janeiro para conquistar um nicho de mercado. Tudo bem, pode ser que ainda esteja em processo de amadurecimento, mas é assim que as coisas acontecem.

DIEFO NIGRO/PCR
Imagem de show de Lenine e Spok no Marco Zero do Recife, em 2024 - DIEFO NIGRO/PCR

Acha que o atual modelo do Carnaval Multicultural ajudou a massificar a cultura pernambucana?
João Roberto Peixe (secretário de Cultura no primeiro mandato do prefeito João Paulo, do PT) foi quem promoveu isso. Foi ali que tudo aconteceu. O próprio Peixe procurou a mim, ao Geraldo Azevedo, ao Naná Vasconcelos… Todos nós não frequentávamos o Carnaval de Pernambuco porque não havia música que não fosse sazonal.

Ele fortaleceu as comunidades, porque, no Alto do Zé do Pinho, por exemplo, a pessoa não vai para o centro da cidade assistir ao show. Isso também acontece na Lagoa do Araçá, no Ibura. Isso é muito bacana porque fez com que a música ocupasse todos os lugares da cidade. Isso fortalece os bairros, as comunidades. Foi uma ideia genial.

Como tem sido a experiência de tocar junto com o Maestro Spok?
Esse está sendo um processo de maratona para mim, pois estou apresentando três projetos diferentes no período carnavalesco, e um deles é com o Spok. Através do Carnaval do Recife e de Pernambuco, como um trampolim, essa alavanca fez o Spok frequentar o mundo, e a excelência da orquestra só confirmou a excelência desse Carnaval, mostrando como a música, o frevo, não é para iniciantes, não é qualquer um que toca frevo.

É sempre muito divertido, e faz parte do meu trabalho também a música instrumental, a música sem a necessidade das palavras. Trabalhar com o Spok me permitiu exercitar esse tipo de música mais instrumental, mais arrojada no sentido musical da criação. Cada show que fazemos é uma entrega muito grande. E para mim, é sempre delicioso, caro, e me permite executar a coisa do crooner, do cantor. Estou à disposição para interpretar o que for necessário... Este ano, me senti muito intérprete.

FELIPE SOUTO MAIOR/FUNDARPE
COM AFINIDADE MUSICAL Lenine e Spok na apresentação que realizaram no Festival de Inverno de Garanhuns, em julho; eles repetem a experiência, por ora, só mais uma vez, nesta sexta - FELIPE SOUTO MAIOR/FUNDARPE

Durante a agenda de shows, você consegue brincar Carnaval?
Chegou um momento em que isso se tornou inviável. Passa a ser um período em que tudo o que me preparo para fazer exige muitos detalhes e muita entrega. São quatro dias de trabalho nos quais não posso perder o foco, muito menos me tornar folião. É necessário se preparar para o show seguinte, e assim a cadeia de trabalho segue por muito tempo.

Mas sempre encontro uma brecha para ir ao centro com a família e brincar um pouco. Coloco uma máscara de papangu, pois as pessoas se aproximam muito, e me divirto com a família toda. Ainda consigo, de alguma forma, fazer com que, em um dos dias dessa maratona de trabalho, eu possa me divertir um pouco como folião.

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