MÚSICA | Notícia

Funk e trap na mira: projetos de lei reacendem debate sobre liberdade de expressão

Propostas legislativas apelidadas de 'Anti-Oruam' mostram que relação entre música, periferia e política segue como campo de disputa no Brasil

Por Emannuel Bento Publicado em 12/02/2025 às 15:53

Na história brasileira recente, não são raras as investidas políticas contra manifestações das periferias. Desta vez, porém, um novo movimento chama atenção pela atuação coordenada.

Vereadores de 12 capitais, deputados estaduais e federais e até um senador apresentaram Projetos de Lei para barrar artistas que façam apologia ao "crime organizado ou ao consumo de drogas" em eventos públicos.

Embora não citem gêneros específicos, o movimento ganhou o nome de "PL Anti-Oruam", em referência ao trapper de 25 anos que, no Lollapalooza de 2024, defendeu a liberdade do pai, o traficante Marcinho VP. Assim, os projetos acabam por mirar ritmos como funk, rap e trap, que costumam fazer menções a esses temas em letras.

A iniciativa teve início com a vereadora Amanda Vettorazzo (União Brasil-SP). Desde então, propostas semelhantes se espalharam pelo país, incluindo capitais nordestinas como Fortaleza (CE), João Pessoa (PB) e Natal (RN).

PL é constitucional?

Para o advogado criminalista e professor universitário Renato Fazio, da UniFBV, músicas acusadas de fazer "apologia ou incitação ao crime" precisam ser analisadas individualmente.

"Seria necessário que o autor manifestasse vontade e intenção, pois a simples menção ou descrição de atos criminosos não configuram esses crimes, previstos no Código Penal", explica Fazio.


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Segundo ele, um Projeto de Lei que imponha essa análise de forma "genérica e abrangente" poderia abrir espaço para uma censura prévia à manifestação artística - o que seria inconstitucional.

O advogado cita como exemplo um funk que sugere que mulheres sejam alcoolizadas, abusadas sexualmente e depois "largadas na rua". "O ato é desumano, mas a música pode contextualizar isso como uma história fictícia, o que não se enquadra como apologia ao crime. É preciso cuidado ao fazer essa imputação", alerta.

"É preciso entender como o projeto vai avançar e que tipo de texto seria criado, resultando numa inclusão no Código Penal ou a criação de uma lei nova."

O que há de novo no caso?

Pesquisadores das áreas de comunicação e cultura destacam que projetos de lei e outras iniciativas contra ritmos das periferias não são novidade. O diferencial, desta vez, está na articulação da pauta nas mídias digitais.

"Mais do que gerarem consequências efetivas, esses PLs funcionam como ferramentas de agendamento de pautas morais”, afirma Thiago Soares, professor do Departamento de Comunicação da UFPE.

INSTAGRAM/REPRODUÇÃO
Imagem do rapper Oruam durante show no Lollapalooza de 2024 - INSTAGRAM/REPRODUÇÃO

Ele cita um caso na Assembleia Legislativa de Pernambuco, que propôs a proibição da dança do passinho, do brega-funk, em escolas. "Políticos de extrema-direita, em geral, escolhem esses temas como pólvora para inflamar debates morais no campo da cultura digital."

Por que o funk aborda esses temas?

Leonardo De Marchi, doutor em comunicação e cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ, aponta uma leitura equivocada sobre as letras de funk, rap e trap, que "refletem a realidade dos jovens das comunidades periféricas".

"Não há um culto, e sim uma narração do que os cerca — o que também envolve violência, tráfico de drogas ou milícias. A música negra sempre teve esse papel de relatar condições de vida", explica.

Para o pesquisador, esses ritmos se tornam alvos de políticos conservadores pelo alcance no mercado da música e influência sobre a juventude, configurando uma espécie de guerra cultural. "Nada melhor do que atacar um gênero que mobiliza jovens e é libertador em vários sentidos", conclui.

O caso de Oruam

O professor Thiago Soares também destaca que o caso de Oruam adiciona um novo elemento ao debate, pois o parentesco do trapper estabelece uma conexão mais direta com o narcotráfico.

"A defesa do pai cria uma narrativa inédita no contexto nacional. Não que artistas brasileiros, especialmente do funk, não tenham alguma proximidade, já que há uma dinâmica entre as periferias e o tráfico. Mas, neste caso, a ligação é mais evidente", explica.

Apesar dessa associação, o pesquisador reforça a importância da liberdade de expressão e destaca o caráter ficcional das músicas.

"A produção musical é uma expressão artística que constrói personas ligadas ao real, mas que também o ficcionalizam. São liberdades criativas próprias das periferias, que agora estão sendo interpretadas como dispositivos morais — o que é bastante perigoso."

Quem é Oruam?

INSTAGRAM/REPRODUÇÃO
Imagem do rapper Oruam - INSTAGRAM/REPRODUÇÃO

Mauro Davi dos Santos, de 25 anos, tem mais de 13 milhões de ouvintes só no Spotify e mais de 9 milhões de seguidores no Instagram. Suas músicas falam sobre ostentação, sexo e o fato de ele ser filho do traficante Marcinho VP.

"Meu pai errou, mas está pagando pelos seus erros e com sobra. Só queria que pudesse cumprir uma pena digna e saísse de cabeça erguida", disse Oruam, após show no Lollapalooza.

Nesta quarta-feira (12), Oruam se pronunciou no X (antigo Twitter) sobre o caso:

"Eles sempre tentaram criminalizar o funk, o rap e o trap. Coincidentemente, o universo fez um filho de traficante fazer sucesso, eles encontraram a oportunidade perfeita pra isso. Virei pauta política. Mas o que vocês não entendem é que a lei anti-Oruam não ataca só o Oruam, mas todos os artistas da cena", publicou.

A repercussão do caso mostra como a relação entre música, periferia e política segue sendo um campo de disputa no Brasil. No centro da polêmica, permanece uma questão maior: até que ponto a arte pode ser responsabilizada pelo contexto que retrata?

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