As obras de arte desempenham um papel importante na construção de heróis no imaginário coletivo. Figuras como Tiradentes e Dom Pedro I são lembrados, em grande parte, por meio das pinturas de Pedro Américo.
Com Frei Caneca, não seria diferente. O dia 13 de janeiro de 2025 marcou o bicentenário da morte do líder republicano, executado no Forte das Cinco Pontas, no Recife.
Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo se destacou pela liderança nas revoluções de 1817 – quando Pernambuco se tornou uma República por 75 dias – e na Confederação do Equador, de 1824, movimento que visava estabelecer uma República com várias províncias do Nordeste.
Apesar de sua importância histórica, a figura de Frei Caneca ainda carece do reconhecimento nacional merecido.
A sua imagem foi retratada em algumas ocasiões pela arte brasileira, com destaque para as obras de Antônio Parreiras, realizada em 1918, um ano após o centenário da Revolução Pernambucana; e de Murillo La Greca, que concebeu sua pintura no contexto do centenário da Confederação, em 1924.
Diz a história que Frei Caneca era ruivo, mas não existe nenhuma pintura ou imagem real da sua face. A obra de La Greca acabou sendo uma espécie de retrato oficial do frade carmelita até então.
Compreendendo o impacto da arte na formação desse imaginário, a comissão estadual do bicentenário da Confederação do Equador, sob a liderança da vice-governadora Priscila Krause, propôs a criação de um novo retrato de Frei Caneca.
Roberto Ploeg
O responsável pela obra foi Roberto Ploeg, artista plástico holandês radicado em Pernambuco desde 1982.
O pintor contou com algumas fontes para compor sua obra, incluindo o trabalho de um frade carmelita que realiza pesquisas sobre Caneca em um doutorado na Espanha.
Além disso, imagens geradas por Inteligência Artificial, baseadas nessas descrições, serviram como inspiração para o processo criativo.
"A partir de informações como a pele branca, a ascendência portuguesa, a barba, a meia-idade (cerca de 40 anos) e um olhar penetrante, procurei captar uma figura decidida e determinada. O olhar, em particular, foi uma característica fundamental no retrato", comenta Ploeg, ao JC.
Durante o processo, Ploeg foi ajudado por um jovem que, ao ser fotografado, forneceu uma referência para o olhar do personagem.
'Essência de um herói'
A obra se destaca pelas cores quentes, como os marrons dos trajes dos carmelitas e tons amarelados que conferem luz à composição. Frei Caneca aparece como um "sertanejo meio galego, meio queimado pelo sol", como define Ploeg.
Após a finalização, o retrato foi apresentado à comissão e aprovado. "Acredito que o quadro está funcionando, pois ressoa com o que se espera de uma figura histórica de tamanha relevância para Pernambuco e o Brasil. O que mais me agrada é perceber que ele transmite a essência de um herói nacional, especialmente por meio do olhar."
O novo retrato de Frei Caneca está atualmente em exibição no Museu do Estado de Pernambuco (MEPE) e também estampa a capa da reedição do livro Frei Joaquim do Amor Divino Caneca (Cepe), organizado por Evaldo Cabral de Mello.
Antônio Parreiras
A primeira grande pintura dedicada a Frei Caneca foi criada em 1918 pelo fluminense Antônio Parreiras (1860-1937), um dos principais artistas brasileiros do início do século 20.
A obra, intitulada "Estudo da Pintura Frei Caneca", utiliza uma paleta de cores sóbrias, com predominância de tons de marrom, refletindo um contexto sombrio da Revolução Pernambucana, provavelmente após a derrota dos revolucionários.
A cena retrata o que parece ser um tribunal, onde Frei Caneca, vestido com os trajes de um religioso, aparece de pé como réu. À sua frente, um homem aponta para ele, enquanto outros homens assistem à cena atrás.
À direita, uma grande porta aberta permite que a luz invada o ambiente, criando uma atmosfera dramática e, ao mesmo tempo, iluminando o entorno dos revolucionários.
Heróis nacionais
"Estudo da Pintura Frei Caneca" foi realizado em um momento de grande prestígio para Parreiras, que, já consagrado, recebia várias encomendas para a execução de grandes painéis em palácios e edifícios públicos.
Durante esse período, o artista também pintou obras como ""Morte de Estácio de Sá" (1911), "Prisão de Tiradentes" (1914) e "Proclamação da República" (1915), consolidando-se como retratista de heróis nacionais.
A obra está exposta no Museu Antônio Parreiras, em Niterói (RJ) e foi emprestada ao Museu do Ipiranga, de São Paulo (SP), para a exposição "Memórias da Independência", onde a obra pôde ser apreciada no contexto das grandes narrativas históricas do Brasil.
Murillo La Greca
"Execução de Frei Caneca", do pernambucano Murillo La Greca, é a representação mais icônica do revolucionário até a atualidade. Foi pintada na década de 1920, no contexto das comemorações do centenário da Confederação do Equador.
Esse foi um período de intenso aprendizado e aprimoramento do artista enquanto estudava em Roma, na Itália.
A composição é dividida em dois planos. No lado esquerdo, um grupo de soldados traz expressões que oscilam entre a determinação e a apatia, sugerindo o peso da tarefa que lhes foi dada.
À direita, iluminado por um foco de luz que destaca sua figura, está Frei Caneca, amarrado a um poste, pronto para ser executado. Sua postura é altiva e serena, simbolizando a coragem diante da morte.
Obra foi dividida
"Murilo La Greca eventualmente pintou algumas figuras da nossa história e essa é uma das mais significativas", diz Carlos Alberto Barreto Campelo, biógrafo do pintor.
"A pintura reflete o estilo figurativo e acadêmico característico de La Greca, com pinceladas largas e menos detalhismo, um traço marcante desse período inicial. Mais tarde, influenciado pelo estudo de afrescos na Itália, ele aprofundaria sua técnica, aproximando-se mais de detalhismo dos renascentistas."
Curiosamente, esse quadro foi cortado ao meio, dividindo os planos do Frei e dos soldados. Atualmente, a parte que retrata Frei Caneca está no Mepe, após uma doação feita pelo Bandepe, em 1998. Já o outro lado está no Museu da Cidade do Recife.
Legado
Essa separação, ainda que peculiar, não diminui o impacto emocional e histórico da obra. Em tempo: também existe um painel de Frei Caneca feito por Cícero Dias, disponível na Casa da Cultura, no Centro do Recife.
De Parreiras a Ploeg, cada obra contribui de sua forma para eternizar um legado, inspirando novas gerações a valorizar a luta por justiça social e liberdade.