Recife passa de 3 para 57 'patrimônios culturais imateriais' em sete anos; especialistas apontam banalização
Câmara Municipal tem assistido a uma explosão de aprovação de títulos de "patrimônio cultural imaterial"; apenas em 2024, foram feitas 37 propostas

O Recife tem assistido a uma explosão de aprovação de títulos de "patrimônio cultural imaterial" na Câmara Municipal. Apenas nos últimos sete anos, a cidade passou de três para 57 patrimônios.
Apenas no ano de 2024, foram feitas 37 propostas - das quais 23 foram aprovadas e 13 ainda estão em tramitação. O levantamento foi feito pelo produtor cultural Guilherme Moura.
Com esse ritmo, especialistas têm apontado para o risco da banalização do título, já que atualmente o executivo municipal não dispõe de uma estrutura específica para analisar essas propostas. Os ritos têm passado apenas pela Câmara Municipal, com votos de vereadores, e pela sanção do prefeito, sem análise de um comitê especializado na área.
No Governo do Estado, por exemplo, existe o Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural (CEPPC), para a deliberação final sobre registros no Livro de Registro do Patrimônio Cultural Imaterial do Estado.
O que é patrimônio cultural imaterial?
A descrição do que é um "patrimônio cultural imaterial" é um tanto abrangente: são práticas, expressões, conhecimentos e técnicas que as comunidades e os grupos sociais reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.
Apesar disso, algumas proposições soam bastante inusitadas, como "crossfit", de autoria do vereador Samuel Salazar (MDB), que foi retirado de tramitação. Recentemente, a aprovação do título para o festival Samba Recife, de autoria de Hélio da Guabiraba (PSB), também causou controvérsia - embora ainda falte a sanção do prefeito João Campos.
No caso do Samba Recife, a polêmica existe pois o patrimônio imaterial deveria dizer respeito a expressões culturais coletivas, que não tivessem um "dono" direto, como no caso de um evento privado. Em 2021, um PLO do então vereador Pastor Junior Tércio (PP) deu o título à "música gospel". Entretanto, no contexto municipal, o termo 'gospel' refere-se a um movimento associado a igrejas específicas.
Até o momento, o único movimento para criar um filtro dessas propostas é da vereadora Cida Pedrosa (PCdoB), reeleita em 2024. O PLO 384/2021 "estabelece a obrigatoriedade de parecer emitido pelo Órgão responsável pela salvaguarda para concessão de 'Título de Patrimônio Cultural Imaterial'". Contudo, o PL está parada desde março de 2022.
O que dizem especialistas
De acordo com especialistas, o problema está no atual modelo de aprovação dos títulos.
"O reconhecimento do patrimônio cultural imaterial existe para que o Estado dê uma atenção especial para determinado bem cultural. Ele passará a ser monitorado e avaliado, de acordo com as suas transformações ao longo do tempo. Também criam-se acessos e facilidades para que essa manifestação consiga continuar existindo enquanto prática social", diz Aramis Macêdo, especialista em Gestão e Política Cultural e Conselheiro Municipal de Política Cultural do Recife na cadeira de Patrimônio Cultural e Arquitetura.
"A forma como esse título tem sido aprovado hoje não tem criado nenhum benefício para a sociedade, gestão pública ou beneficiado, então existe uma incoerência. É preciso que exista uma análise técnica executada pelo poder executivo, visto que não é uma atribuição legislativa fazer esse tipo de ação", continua.
"O Conselho Municipal de Política Cultural tem decidido sobre algumas configurações dos PLs, mas quando a lei volta para a Câmara, os vereadores mudam dizendo que estão ouvindo a sociedade. Porém, a sociedade também esta representada no Conselho. Somos praticamente uma assessoria técnica gratuita com participação da sociedade civil", defende.
Política de preservação e salvaguarda
Marcelo Renan de Souza, Gerente de Patrimônio Imaterial da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, também ressalta que nem tudo pode ser enquadrado como patrimônio cultural imaterial, "muito menos sem estudos técnicos, mapeamentos e instrumentos de gestão".
"Um efeito ainda pior da ação do legislativo municipal é o enfraquecimento dos órgãos de Patrimônio do município, que ficam restritos e sem atuação sobre esses reconhecimentos avulsos, além da ausência de uma política unificada de preservação e Salvaguarda do Patrimônio Imaterial", continua.
Ele comenta que, em 2022, um GT institucional da própria Prefeitura, com a presença de órgãos de patrimônio e universidade, desenvolveu propostas para uma política municipal e que chegou a ser encaminhada ao prefeito e à Câmara, mas não avançou :"Creio que os títulos políticos sejam para eles mais interessantes".
Para o especialista, a banalização do título já vem ocorrendo. "A preservação do patrimônio imaterial deve ser sobre a expressão cultural coletiva, que não tenha um "dono" direto, que seja uma referência pautada na forma como a sociedade se organiza."
"Hoje temos reconhecimentos de eventos promovidos por produtoras culturais como o Rec-Beat e Samba Recife, de bandas como Ave Sangria e Devotos, e tantos outros casos, alguns acertados como a Cultura de Bois e Afoxés que, embora merecidos, passaram sem nenhum estudo técnico, consulta ao Conselho de Cultura do município, ou apontamentos de medidas de Salvaguarda. Ou seja, um ônus, pois ocupa o legislativo com votos políticos sem efeitos diretos na política pública de cultura e patrimônio, e deturpação do trabalho sério produzido por pesquisadores e órgãos e entidades de preservação."
O que diz a Prefeitura do Recife?
Em nota, a Secretaria de Cultura e a Fundação de Cultura Cidade do Recife informaram que "analisam a criação de um fórum com participação popular e de entes da academia, bem como instituições de reconhecida prestação de serviços no segmento".
"A gestão municipal reforça que a Casa de José Mariano, fórum da vereança eleita de forma democrática pelos munícipes, possui autonomia legal para também propor e reconhecer a patrimonialização de pessoas físicas e jurídicas, por meio de instrumentos legislativos."
Além disso, a nota menciona a recente política do Registro de Patrimônio Vivo Municipal, instituída desde 2023 e que "estipula bolsas de incentivo para pessoas físicas e jurídicas que fortalecem a cultura popular, os brinquedos e seus brincantes".
Confira os 10 vereadores que mais assinaram autorias de PLOs sobre patrimônio cultural imaterial:
17 Cida Pedrosa (PCdoB)
8 Aline Mariano (PP/PSB)
6 Marco Aurélio Filho (PTRB/PV)
5 Almir Fernando (PCdoB/PSB)
5 Liana Cirne (PT)
5 Elaine Cristina (PSOL)
4 Alcides Cardoso (PSDB/PL)
4 Eriberto Rafael (PP)
3 Ivan Moraes (PSOL)
3 Hélio da Guabiraba (PSB)