Três observações importantes precisam ser feitas sobre o evento em que foi firmada a filiação de Raquel Lyra ao PSD. A primeira é sobre construção de narrativas políticas, a segunda é de ordem estética e a terceira é sobre pragmatismo.
Uma narrativa para ser considerada assim precisa ser desenvolvida através de uma sequência de acontecimentos e eventos, organizados para vender algo, seja um objeto concreto ou uma ideia e até uma candidatura.
Quando Raquel Lyra lançou sua proposta para governar Pernambuco, carregava como capital de base uma administração exitosa na cidade em que era prefeita, o discurso de trajetória competente por todos os postos que ocupou, a identidade feminina inédita para o cargo que pretendia e o ataque à administração estadual da época que, mal avaliada, foi abandonada à própria sorte até pelos aliados.
Com isso, é possível construir um conjunto poderoso de argumentos. Mas passou.
Já foi
A eleição da governadora deu as bases para que quase todos esses fatores evaporassem ou perdessem seu efeito. Ter sido prefeita de Caruaru não é mais argumento indutor de confiança, é reminiscência, currículo. Porque agora, e já há mais de dois anos, ela é governadora.
Usar a prefeitura como argumento de reeleição é como pedir para continuar pilotando um avião que você já pilota repetindo a todos que dirigiu bem um ônibus.
Virando…
A competência também não é mais novidade, porque só faz sentido exaltar a natureza extraordinária da competência quando a incompetência é regra. Sem um governo Paulo Câmara para comparar, ser competente é obrigação inerente à realidade, é obrigação e por ela nada se cobra.
Ser mulher também não é mais novidade, embora seja algo importante para lembrar, já que ainda há tão poucas mulheres em cargos de poder no mundo. Mas o rompimento do ineditismo com a eleição de duas mulheres em 2022 já aconteceu.
O principal a ser visto é que o que tinha de mudar já mudou, embora o slogan do governo ainda seja “mudança”. E talvez, atenção, isso devesse ser melhor analisado.
…a chave
Mas se o evento de filiação ao PSD pretendia, como pareceu, ser o ponto de partida para uma virada de chave na condução política e de imagem de Raquel, talvez tenha começado com sucesso.
Nos discursos, a própria governadora olhou mais o para-brisa que o retrovisor. É um bom sinal. O presidente nacional do partido, Gilberto Kassab, chegou a falar em presidência da República para 2030 usando o nome da nova filiada como exemplo. Se era pra olhar à frente, a moderação nem entrou na sala e deixou o futuro correr solto.
O título dos cartazes, aliás, era sobre isso: “Vem Futuro”.
Estética
Por falar na ausência da moderação, o evento teve estética tão vinculada a uma convenção eleitoral que só faltou a frase “domingo nos vemos na urna” encerrando os discursos. Mesmo que “domingo” esteja a quase dois anos daqui.
O locutor era o mesmo que costuma fazer os comícios de palanque para Raquel em campanhas. O palanque/palco tinha uma grande foto da governadora, com o número do PSD e destaque na bandeira de Pernambuco. Os convidados iam subindo para os discursos com músicas que pareciam um jingle de campanha exaltando o nome da governadora.
O auditório ficou lotado de prefeitos e outros apoiadores que chegaram em ônibus, trazidos de vários municípios do estado, os aplausos eram consistentes, frequentes e efusivos.
Problema
Quem estivesse passando pelo local, desavisado, certamente, procuraria um calendário para saber se já é 2026. Se aquele não era o lançamento da campanha de reeleição da governadora, fica a curiosidade para saber o que acontecerá quando for, de verdade.
Tudo é justificável, óbvio, pelo acontecimento da filiação. Não é um evento administrativo, é um acontecimento político.
Apenas se essa estética de campanha continuar, aí sim haverá um problema estratégico.
Só em 2026
Somente um adversário na oposição tem interesse em antecipação eleitoral. Até agora, a governadora reagiu bem a todas as provocações para que essa disputa fosse antecipada, permanecendo firme no propósito de governar.
É bom que a resistência continue por mais alguns meses, ou será ruim para a administração e para os pernambucanos.
Eleições já são desgastantes demais para o desenvolvimento do que importa, deveriam durar menos e acontecer com menos frequência. Quem tenta antecipar as disputas sempre presta favor ao prejuízo.
Pragmatismo
Para além de tudo isso, o evento do PSD precisa ser visto como uma celebração ao pragmatismo. E não é o pragmatismo artificial pouco republicano, nem de negociatas, mas de resultados práticos.
Em determinado momento da evolução social humana, as fantasias, os ídolos e a construção poética de emoções vazias são necessárias como instrumento de ordem, condução e aglutinação política. Mas a falta de objetividade faz com que tenhamos prejuízo prático. E Pernambuco teve muito.
Mitos
O estado perdeu muito nas últimas décadas ancorando suas esperanças em figuras míticas, salvadores performáticos e santos de ocasião, montados em utopia mais aliciadora que esclarecedora.
Deixamos de crescer, muitas vezes, pela dificuldade que os mitos costumam ter para aceitar o progresso, porque este os tira de moda. Deixamos de evoluir porque toda solução real para problemas reais prejudica a manutenção da utopia como cabo eleitoral.
É mais barato dizer que o pobre vai ter água do que colocar água na torneira. Porque depois que ele já tiver água, que sonho sobra para vender na eleição?
Ouvidos
É preciso acabar com a artificialidade dos discursos e dar contorno prático às ações. Pode apostar, Gilberto Kassab não levou o PSD a quase mil prefeituras no espaço de uma eleição, quase 20% de todos os gestores municipais do país, vendendo utopia.
O presidente do novo partido de Raquel é conhecido como alguém extremamente cartesiano, embora não perca a sensibilidade para as urnas em cada local onde amarra seu cavalo. Precisa ser ouvido e pode orientar a equipe de Raquel se lhe derem oportunidade. Será bom para Pernambuco.
O primeiro passo foi dado, era a filiação. Vejamos como será o restante da caminhada.